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quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

O Jardim de Flores Brancas



                               Ilustração: Internet

   Primeiro Canteiro de Palavras, ou Primeiro Capítulo    
Deu-se que o sujeito sumiu... 

Para ter exatidão na narrativa e ser positivo sobre quem falo, o nome dele é Seu Lopes. Assim evito qualquer engano de sua pessoa. Pois foi muita vez que fez isso de desaparecer quando navegava o mar, coisa com que ninguém da família se ajeitava. Mas isso não é hábito de agora, que é seu tempo de maturação e barba branca; tempo de lavrar a terra e se meter lá pelos matos dos confins de Minas, bem na profundeza do grotão, como se não quisesse mais ser avistado. É que já foi ajeitado assim, desde novo, em navio e porto que faziam o danado do marinheiro perder o rumo de casa, à custa de muitos meses sem mulher. Já maduro, abandonou o mar e dedicou-se à terra, mas não abandonou os vícios.

Já que o sujeito sumiu nas andanças e não deixou paradeiro, não custa nada averiguar se ele foi picado por cobra jararaca ou cascavel, no sítio de Santa Bárbara, pois dizem que “tem” lá uma quantidade capaz de fazer uma desgraceira nas pernas do cabra. Seu Lopes, precavido por sinal, deu por usança andar com botas de cano longo, por questão de cuidado, temente à rastejante, cujo nome não repete, por respeito e tradição. Mas teve que largar às pressas a tal medida das botas de cavaleiro, porque os pés foram inchando, inchando, inchando, preocupando sua cabeça com dúvida da qualidade do coração. Deu receio de estar doente. Livrou-se das botas num canto do quarto e o inchaço desapareceu.

Lá nas terras os cupinzeiros iam sinalizando as lonjuras do seu domínio, competindo com o sansão-do-campo; a coruja na grota do cupim, piando e fazendo ninho, vigiando os domínios do novo dono, enquanto ele metia o chinelo raso no lamaçal, só para espreitar o tapecuim e arejar os dedos. Vistoria de qualidade, vigilância de cada palmo de terra, da rama até a raiz, a cada planta pedindo que se diga: benza-a Deus, para afastar o mau-olhado. Homem cuidadoso no trato com planta e bicho, acima de tudo, por pura justeza de afeição; já com gente nem é de muita paciência, porque muito sujeito vivo nem tem serventia pra viver. O tal que não vale o prato que come ele nem atura conhecer. Tem pouca tolerância com esse tipo de cidadão.

Talvez Seu Lopes tenha sumido lá na direção de Lima Duarte, onde foi ver um caboclo bom de fazer móvel; o tal marceneiro Zé Mateus, engenhoso, ciente e dono de muita madeira de lei, a quem ofertou uma cafeteira italiana, para ter com ele uma amizade e boa ocasião de prosa e café de qualidade e bastante calor; isto tudo porque café frio não presta, de jeito nenhum; nem a conversa apruma e vai adiante com café frio. 

Estreitou companheirismo fraternal de instante, na encomenda da porta de jacarandá; uma para a entrada da sala, de moldura em arco, lateral de vidro e umbral de bom gosto, porque tem habilidade para escolher coisa sem nenhuma rudeza. Quem viu diz que é lindeza de fazer cobiça... E ainda mais; encomendou, por muita consideração e apreço ao marceneiro as oito cadeiras de espaldar, as seis banquetas e uma prancha para o bar; uma estante e uma mesa de jantar, de mimo para a mulher com quem vive. Questão de lhe fazer um agrado; um apreço que tem só com ela, com nenhuma outra, porque aquela é a dona do lar... 


 Segundo Canteiro de Palavras ou,

Capítulo II
Pode ser que tenha sido tocaiado na curva do mata-burro, por questão de peleja; coisa nascida na questão de pouca água de serventia em suas terras e escassez de boa vontade de quem lhe vendeu o terreno. O cabra diz que não tem água com fartura e a seca é grande. O tal do Seu Nego, empregado que cuida da fazenda vizinha, diz e desdiz a coisa toda, estremecendo os lábios numa evidente aflição de velho roceiro intrigado com tanto atiçamento na calmaria de criar tilápias. Água tem... E muita! Mas a água vinha da fazenda vizinha, cujo dono vendeu as terras para Seu Lopes, prometendo fartura e agora que já tinha vendido, andava emburrado. Muita água. Coisa novidadeira para quem só criava boi. O mais que Seu Nego faz é abrir e fechar a água que serve ao Seu Lopes, assim evitando embate. Pois numa infeliz carraspana, além de abrir a bica de água, também abriu o bico com a tal Marilena, assunteira das boas. Espalhou com ela e quem mais, sabe-se lá, que o patrão tem uma amante. Alastrou a conversa atrás de portas e janelas, pela fazenda, qual fogo em estopim; a empregada enredou a trama com fios de cabelo de mulher em travesseiros... Mas o que a moça visitante deixou foi aroma de rosa. Agora a criada diz que falaram, ouviram dizer e contar entre cochichos, que a Dona das ultimas sentimentalidades do patrão vai e vem de vez em quando, de visita encoberta em mantas. Pois então, a intriga se esparramou feito leite no chão... Marilena, enxerida no caso, garante que a Dona deixou pistas; que a moça veio amoitada e largou rastro na passagem. E a pendenga aumenta todo dia e se alimenta de boca em boca, aborrecendo o patrão que não tem papas na língua e muito menos paciência e juízo pra conversa fiada e diz-que-me-diz. Pode até puxar arma pra convidar o macho que tenha coragem e atrevimento de prosseguir com a narrativa do episódio de infidelidade e afeição com outra mulher. Ele, logo ele. Discreto e calado e que não  dá confiança a ninguém. Nada de divulgar suas intimidades e seus chamegos e muito menos os seus paradeiros. O patrão já estava agastado com toda essa conversa de língua de trapos. Eta povo encrenqueiro! Suspirava...

O sumiço pode ter ensejo na questão do caseiro, que é sujeito sonso e acabrunhado e com quem Seu Lopes se desaprumou na conversa em um dia desses. O agregado é matuto de pouca fala e obediência e de menor decisão. Cidadão de tez escurecida de sol, cara de desinfeliz quando está ocupado com sua obrigação de molhar planta. Faz de tudo, mas com desenvoltura modesta, desde que não lhe imponham coisa contrária à sua predileção: fazer do costume que sabe, conforme aprendeu vendo o pai na roça em Barbacena, sem muita ordenança na cabeça ou atenção. Indisposto para aprender do jeito que tem que ser. Sabe coisa de serventia pra planta e pro chão; mas coisa muito pouca... E nem quer aprender mais, porque isso cansa a cabeça, ele diz. Aparvalhado no trato, mas arrogante de posição, porque de humilde só tem o feitio e o falatório de cabra de pouca instrução. Diz que doutor não sabe nada, porque quem cura é Deus, no que, em muito tem razão, mas médico faz falta também. É que o sujeito fica demente na questão de saúde dos filhos, por quem morre por dedicação e zelo. Não aguenta ver ninguém maleitoso, que chora como criança abandonada pela mãe. Nessa ocasião falta ao trabalho e desorienta os sentidos. É um homem de crença. Quando está nublinando, no seu dizer caipira, ele se ajeita na foice com medo de onça que vem beber água. Depois de se benzer prefere mesmo um facão na parecença simplificada de resolver a vida com bravura, ganha-pão e reza. Certo é que para a labuta não tem muita serventia, mas por comprometimento e necessidade de todo homem honrado diz que trabalha de sol a sol e prega a palavra de Deus. No embornal vai a Bíblia, na ideia atarracada vai a foice e a devoção.

Desinteligência houve entre o empregado e o patrão... Briga de pouca abrangência seria se não perdesse a ocupação de caseiro e homem de confiança; coisa que levantou a satisfação da cidade quando se lhe tirou a chave do casarão. Gente que não suporta a vitória alheia deu-se por muito contentada com a perca de sua ocupação. Lá se foram o bom salário, o aluguel, o dinheiro da farmácia e a disposição para sentar praça em lugar decente e ganhar a vida com honradez. Desavença com o empregador que desvendou seu caráter no soco que ele deu nos queixos da Dona Maria, quando esta lhe cuspiu na cara; aliás, muito bem merecido o murro, porque a isso ela fez jus, mesmo sendo mulher. Aquela miudinha já tinha dado cabo de peão, com malícia e fio de facão. picou o sujeito todinho num golpe certeiro. Só anda de faca na cintura e desafia homem e mulher. Gostava de se fazer temerária. Desaforada! Valeu-se diante dele de ser uma fêmea atrevendo desafiar homem brabo e recatado nos costumes. A tal se meteu em sua vida, por gosto e malqueirança e inveja de fazer gosto. Pobre caseiro! A dona deitou falação na vida do roceiro que, daí por diante, só deu pra trás, fazendo intriga com a família, ameaça e cantilena de delação de seus erros do passado; pronta pra entregar tudo para o patrão. O tudo que ela dizia era nada... Asneira pouca, aliás, coisa pequena; apenas questão de preguiça dele, erro sem gravidade, porque honesto ele sempre foi e dava conta do serviço; no jeito dele, no tempo dele, mas dava. Se não dava conta do serviço em uma hora, dava em outra e tudo ficava pronto. Pura bisbilhotice da megera invejosa que custou ao pobre o sossego e a prosperidade. Daí por diante, a vida do caseiro só deu pra trás. 

Terceiro Canteiro de Palavras

Capítulo III

Depois disso o desgraçado ajuntou mulher e três filhos melequentos no velho fusca “torovão” azul e caiu no mundo. Da fartura à eira nem beira, num só baque, tudo desceu enxurrada abaixo, por conta do palavrório da Maria, que devia ter um amor enrustido pelo infeliz, a ponto de acabar com ele. Êta muié ruim... O coitado do empregado, tão temente a Deus, levou amargura e olho-gordo da inveja alheia, pesando sobre suas costelas a ira de Eva; invídia de vê-lo tão bem situado. Uma cobra! Por pouco tempo teve um trabalho proveitoso que enricou sua vida em utilidades; a mulher fazendo luxo e gosto com máquina de lavar roupa e fralda descartável. Ele mesmo, de casa boa, botina, se arranjou com bicicleta, relógio e rádio gravador, apadrinhado pelo patrão. Diz que o rádio é serventia para o ministério da religião, porque é pecado ouvir música ou ver televisão; diz que é tudo coisa do demônio... 

Aquilo foi demais para a cobiça do populacho que crescia os olhos pra cima dele. Vida boa, prosperando no sítio... Quem diria... Aquele atoleimado... E ainda dizendo que um dia seria pastor. Pois o povo não aguentou; e o povo danado a falar, falar, falar. Imaginem... Pastor! Até alarde de recreio no campo, um besta... Pois é, repetiam aqui e ali que o caseiro deu de levar a molecada toda, o pai, a sogra, o cachorro e a mulher; tudo enfiado no velho fusca, para fazer uma galinhada no domingo, coisa, aliás, que contrariava Seu Lopes e despertava a inveja da inconformada Maria e o resto da cidade. Vinha tudo empoleirado no “torovão” azul, fazendo algazarra pela poeira da estrada, mesmo a muito contragosto do coitado do patrão. É que não tinha sustentação a reclamação do senhor de não querer o povo todo embocado no sítio, porque o cabra nem era dono do seu querer. Tudo cabia na decisão da sua mulher... Eta muié mandona! A dona insistia em dia de domingo e lazer na preguiça, como fazem as patroas. Mas só depois da reza no templo, porque homem que se preza é respeitoso a Deus. E o homem obedecia.

Foi-se afinal o caseiro, tão pobre quanto veio depois da celeuma instaurada. Chamado pra briga no braço, ou do jeito que tivesse valentia, o dito recuou de prosseguir na provocação da Maria, armada com muito ódio e um facão. Foi-se desaprumado, humilhado no desalinho da calça amarrada com um fio de pobreza. Maria finalmente sorriu. Maria riu. Gargalhou! Não teve jeito; conversa vai, conversa não vai,  o dia chegou e, para sua desgraça, o matuto foi trocado pelo primo do patrão. Largou o rádio, a bicicleta e a ilusão. Eta povo de língua grande!

Quarto canteiro de palavras ou
Capítulo IV


O caseiro foi embora, mas antes fez questão de apertar a mão de Seu Lopes e lhe prestar fidelidade para o resto da vida. Tinha suas razões para gostar do homem. Se precisasse, para qualquer coisa, era só chamar. Disse que  procurasse por ele lá em Dores do Turvo, no sítio do Matias. Matias ia dar conta de seu paradeiro. Foi-se o caseiro e chegou o primo. 

O primo era um sujeito maneirado de trejeitos e falatório apressado, mas vagaroso no pensar e no agir. Isto pode ter dado causa à intolerância de Seu Lopes, que já estava muito cansado de falatórios e confusão no sítio. Era uma coisa, era outra e não davam descanso. O homem não tinha mais paz na vida e já começava a sentir falta do mar. E assim ele despediu o caseiro e acolheu o primo que escondia sua natureza no sorriso ardiloso... 

Pois não é que o fulano de cidade grande, ruivo e de sardas no corpo inteiro, desarticulado no baixo porte e nos movimentos, desalinhado nos dentes, não se ajeitou na roça? Pois é! Não se ajeitou, nem por insistência, nem por destinação de conforto que o parente ofertou a ele. Pura misericórdia de quem o acolhia, mas o danado do cabra era de vontade curta para trabalhar. Não tinha esforço para enfrentar o chão. Só via rede e viola. O senhor Lopes, com quem o primo nunca teve parecença, deu-se por pai do indivíduo, só para ajeitar a vida do infeliz, por devoção à família e caridade aos parentes mais desvalidos. Deu salário, moradia, conforto de cidade pequena e tranquila e uns por fora pro camarada se distrair... Mas o cara foi arranjar desafeto naquelas cercanias, achando que a vida estava muito sem graça, parada e morna naquelas distâncias de mato alto. A mão do sujeito era lisa feito mão de moça e secava tudo o que ele tocava. Morria o mato, morriam as plantas, esturricavam as flores, definhava a cerca viva. Nem o capim do pasto aguentava. E o danado não se ajeitou de jeito nenhum na roça. Enfiou-se na Igreja, pois muito pouco se dava com as terras e suas exigências de trato. Porque terra demanda cuidados, mãos grossas, apego e devoção e o citadino não tinha uma coisa nem outra. Sofria de indolência e dores no corpo e não tinha a mão benta para acarinhar o solo e as plantas. O engano foi ter ido para a roça com intenção de plantar buchas para negociar em São Paulo. É que o rapaz não tinha nenhuma dedicação ao serviço e nem boa vontade em ser grato ao parente. Depois de mês e pouco rematar que a terra não era jeitosa pra tal espécie de planta, o fulano se desafeiçoou da obrigação, dando graças a Deus e abanando o chapéu de palha. Pois é, enfiou-se na igreja, mas não foi por devoção ou temor a Deus. Muito fervor mesmo foi por preguiça. Preferiu reza e violão na cidade o dia inteiro, deixando a terra do primo Lopes ao abandono, enfraquecendo as ideias do empenho de acordar cedo, regar, cuidar, ajeitar, capinar... Deu-se por satisfeito com a vida de cantador, rezador e andarilho.

Para Seu Lopes foi grande a decepção de ver o sujeito encostado, tocando viola, bebendo como um gambá e promovendo maledicência com satisfação na cidade, enquanto as plantas secavam e morriam na roça. O jardim da frente do sítio estava acabado. Nem um talo verde brotado no chão. Nem uma flor, nem grama, nem mato, nem capim; não sobrou nada. Nada mais nascia naquele chão. Tudo esturricado. Eta, primo! Pior que tudo era o parentesco que unia os dois na mesma raiz de família. Vai que o povo acha que é tudo farinha do mesmo saco... Para agravar o desmando, bem aleitado na cachaça, o primo deu de querer alisar uma dona respeitosa que nunca conheceu homem. Partiu pra cima das virtudes da moça querendo invadir as intimidades da donzela e profanar sua pureza na reclusão da sacristia. Cometia dois crimes num só desaforo de desrespeito a Deus e aos homens. Era isso mesmo, tudo errado em um desatino. Fato impuro, sórdido e pecaminoso, dobrado no grande atrevimento do forasteiro, que ofendeu Deus, a cidade e todas as mulheres decentes. Evento que não merece tolerância e indecisão da parte de ninguém. Era uma questão urgente de se ajuntar todos os homens do lugar e lhe arrancar fora as partes com bastante vagareza, para ver o cabra pagar e chorar, antes de morrer... E que o padre não ficasse sabendo do justiçamento! O sujeito tinha se atrevido com coisa séria. Só lhe restava escapulir no meio da noite, para não amanhecer morrido de foice ou facão. Era o que o primo de Seu Lopes pensava fazer...

Por conta de tanta contrariedade no sítio, Seu Lopes, do jeito silencioso que sumiu por quinze dias, também deu remédio na sua desaparição e voltou... Calado, arredio, sem gosto para muita conversa. Retornou sem qualquer aclaração dos ocorridos nas suas terras, acompanhado de um cachorro que vive guardado na sua mais alta consideração e nas suas confidências... Coisa amorosa de repartir com o cachorro o mesmo prato, a afeição, as conversas, os segredos e o mesmo canto para dormir. No mais, anda mudo e taciturno.

Dizem que ele mesmo deu solução no assunto, porque não aguentava mais tanta falação e porque nessa vida ele admite quase tudo, menos desrespeito à mulher moça virgem. Ainda mais ofensa de gente do seu sangue e dentro da igreja. Não! Não era farinha do mesmo saco! 

Só se sabe que antes de voltar para casa, depois do inexplicável sumiço, Seu Lopes deu um pulinho em Dona Eusébia, cidade vizinha, pra comprar umas plantas novas de sua mais nova estima. Tudo mudinha tenra e promissora de muito bom viço, já brotando em botão. Resolveu refazer de uma hora para outra, sem nenhuma explicação, os canteiros do jardim, com novas flores. Levou as plantas, mas não precisou de adubo. E no novo jardim Seu Lopes só plantou flores brancas... Muitas espécies de flores brancas, sua nova predileção. Flores de luz, flores de paz, tão alvas, tão claras e virginais...

O tempo foi passando, passando e o jardim floresceu; de morto passou finalmente ao verde reverberante de lindas flores. Seu Lopes repetia invariavelmente a quem fosse curioso e viesse perguntar pelo viçoso jardim... Bonito, não é? Gabava-se. E dizia de suas crenças nas flores, no que afirmava estar bem certo: melhor planta e cachorro que certo tipo de gente!... Tem sujeito que não  presta nem mesmo para viver; não vale mesmo a comida que come. 

Estranhamente todas as flores brancas nasciam com uma nódoa vermelha, parecendo uma pequena mancha de sangue. Nenhuma delas era totalmente branca. Mas, isso pouco importava. Seu Lopes dizia que a réstia vermelha até deixava as flores mais bonitas e raras. 

O caseiro, para espanto e inveja de alguns, também voltou. Seu Lopes afirma que é o único em quem pode confiar de olhos fechados.

Pois então. Deu-se que o sujeito sumiu!...

Autora: Valéria Áureo 

To: Angélica Maria Silva

terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Coisa de afeição ou amor à primeira vista




Fonte: Internet


Era apenas um menino da fazenda vizinha, visto aqui e ali, numa aprumação franzina, escanelado por falta de apreço aos doces e resistência à comida. Falta de apetite e aspiração. Perna fina. Porte de menino que ia crescendo desjeitado no prumo de duas vigas inclinadas para frente feito bambu, arqueado de peso e responsabilidade. Foi sempre miúdo no crescimento; assim mesmo era sujeito bom de tarefas. Difícil explicar a força que saía daqueles dois braços quebradiços de gravetos. É que já se tinha por chefe da casa desde que o pai se embrenhou mundo afora, deixando a mãe e a roça pra Deus cuidar. Dizem que foi coisa de amor desconsiderado por uma mulher casada e que disso só recolheu estrago pra vida. Deixou pra trás a casa e os filhos sem qualquer consideração ou piedade. Declarava que o amor havia corrompido os sentimentos pela família e precisou seguir seu destino. O menino, até então, não podia compreender tal sentimento. Sobrou ódio pelo pai. De tão pequeno, de tão sem pai, virou Zé Dadaia; Zé, filho da Dária, embora também fosse filho do Dirceu. Decidiu pela orfandade paterna, de tanto rancor que guardou.

 De repente o moleque miúdo deu uns volteios, uns rodopios no tamanho das pernas, os braços estirando a pele e os ossos num arrebatamento só. O pescoço encompridando para cima, o queixo alargando e arrastando os dentes; e do nada se deu arrancado no crescimento. Ficou moço de traços esguios. Já rapaz foi se empregar na fazenda do Seu Teixeira, por consideração ao padrinho e afeição à menina que, de soslaio acompanhava crescer como flor de manacá. Deu de sonhar acordado, acometido de mal que afeta os desavisados... O amor o perturbou tanto que de dia se perdia em devaneios e à noite não dormia. Ficou cativo das nuvens e tormentos que pontilhavam a alma que não era dela; não sendo dela, doía tanto que de mais ninguém seria. A alma ora ficava, ora fugia, meio sofrer, meio esperar. Mais que o amor, a alma morria... Iniciado rapaz já se perdia em dançar com a moça de cintura fina; ao menos em sonhos, quando se estirava no capinzal seco. Deu também de contar as estrelas, hábito que tinha com a rês no pasto. Uma, duas, dez... Cem, mil... Com as estrelas se perdia em número e ordenamento no céu, tentando alinhar os distantes pontos emaranhados no infinito, como se fosse o rebanho. Ora para a esquerda, ora para a direita, os olhos não tinham destino certo, nem sabia ele a que distância a vista teria que ir... Dos números fugia para as palavras, os cheiros, o vento. Quem procura estrelas sempre está perto do céu; mas não era ali que a moça vivia. O rapaz, no baile da festa de Reis, tencionava tomar tento pra vigilância daquela formosura, como se houvesse destinação de ela ser sua e de mais ninguém... Na imaginação deu-se por avexado diante do vestido rosa dela, graça cheia de fitas nos cabelos. Ele tão simples; ela, capricho e cabedal! Viu pelo salão gente embesteirada de manias, muitos empertigados em roupa de qualidade. Ele tímido, reduzido no orgulho e vaidade, sempre de olho nela. Pensava muito pouco de si: muita sela para pouca montaria. Desavisado do destino, não custava nada sonhar...

Zé Dadaia dormiu no mormaço do dia, no intervalo da refeição e o eito, estirado no capinzal... Na imaginação desenvolveu a dança, respeitoso, aprumando o pescoço para cima dos ombros dela, só para sentir o aroma de flor nos cabelos. Eta devaneio presunçoso, meu Deus! Acordado tinha conta de que era ninguém perto dela e nem em sonho a alcançava...

De longe, agachado na estrada, um caboclo toma pinga, as pernas leves e a consciência pesada, porque bebe demais, peca em pensamento e espicha os olhos pra moça que anda toda levezinha no chão batido de terra. Um outro agarrado na viola consola uma lua de parto de madrugada quase perdida e suspira só por conta da solidão. Um outro ainda olha para todas que vêm do campo e não se perde em nenhuma. Lá longe, onde antes se ouviu a toada de bois, segue a vida na rotina, na luta no campo, no corte do capim; e mais um dia se encaixou no crepúsculo.

Agora é noite nascente de poucos sons. Um caboclo acocorado repousa nas pernas dobradas por canseira e desilusão. Canseira, copo e golada de bagaceira. E vai chegando de olhos perdidos nos olhos e pernas de todas elas que voltam para casa. O rosto reflete um cinza fumacento no luminar do candeeiro e elas arriando as pestanas pra encobrir a vergonha e pra noite alumiar o sonho. A noite encobre a passagem e leva cada um ao seu destino...

A velha gaita choraminga fazendo a moça dormir. O pai percebe os suspiros e o perigo de se ter donzela em casa com tanto caboclo rondando. Ele envelheceu viúvo, cuidando da brasa na fornalha, fazendo as vezes da mãe; atento com a filha.  Paciente... Cuida para o alimento ir chegando ao sabor do frango com quiabo. Apaga a chama e deixa a brasa para a panela não queimar. Dia sim, outro também manda tirar o cisco da tapera velha, cuida de ajeitar a lenha. Pouco tem que fazer quando a solidão se acomoda junto do coração. O que pode é se embalar com as cantorias do rádio na voz de Nelson Gonçalves e algumas recordações da mocidade. Toda manhã repete a vidinha assim: vê o padrão das vacas novas, decide o que matar e o que vender; o que plantar e o que colher. Dá direção da lida... Opina, atende, responsabiliza, reforça e cobra.

Na roça o rapagão que conta as estrelas é quem trabalha, enquanto o velho decide. Solta os bezerros no barracão. Cuida dos matos, ajeita a lavoura: roça, capina, cavouca, colhe, seca, bate, recolhe, queima, amontoa. O velho não aguenta mais a tirança de leite. No mais é conversar e pensar na filha que vai ficar sozinha naquelas lonjuras; preocupa porque Deus não lhe deu filho homem. Deus também foi lhe tirando os dias de vida devagarinho, devagarinho, um segundo depois do outro... Foi também lhe definhando os músculos como se esvaziasse um latão de leite. Foi lhe retirando os dentes, os cabelos, a alegria... Ficou desenhado em magreza de pele e osso quase, quando Deus lhe tirou a mulher.

De longe o velho vislumbra o fogo que come todas as matas das cercanias. Queimada consumindo tudo. Conclui que o cabra que faz isso com a Terra não é humano...

Um dia surge um mancebo engravatado. Chegando mansinho de curioso, conversinha e bigodinho fino ocupando a boca ardilosa. O pai arreliado com aquela chegança de forasteiro não se mostra satisfeito. É que a moça da vizinhança já sentia a dor de menino novo apontando pra nascer e confirmando a desonra. O sujeito autor da desgraceira nem era das redondezas. Pois fugiu a passos largos pra se afastar ligeiro da justiça de garrucha. Coitado do compadre Setembrino! Queria isso não!

O velho queria isso pra filha não! Melhor abreviar com a situação arriscada de dar tempo ao tempo e deixar moça em casa, encadeirada  e de boniteza crescente. Flor exposta ao enxame, pensava.

Zeloso sabia que honra de donzela carece de constante sentinela. Uma piscadela e a desonra entrava pela porta ou pela janela. Porta, janela, tudo carece de tramela. Ainda mais... A garrucha sempre debaixo do travesseiro era prevenção e cuidado que podia ter. O dado mais relevante é que já se sentia vivido demais pra tanta prevenção, sabendo que não ia durar para sempre. Deu de ficar cansado no peito e pouca respiração. Não aguentava escada e nem latão de leite. 
Tudo passava pela cabeça do velho enquanto livrava a filha dos moços que chegavam de mansinho. Vinham rasteiros que nem cobra peçonhenta.  
Do seu lado o sujeito de fala mansa, doutor, de própria declaração pensava: - vai ser do jeitinho que estou com vontade! Mas a menina é arisca, meio pra aqui, meio pra ali; parte criança, parte moça. E nem se deixa avistar na varanda. Resguarda no quarto a boniteza da idade. O doutorzinho arredou até a Igreja, assuntando, tirando uma olhada de longe, nas formas, na boca com o desenho do riso dela sob o véu. Tocaiou na hora da missa, sondou aqui e ali e decidiu, confiscado de fome e desejo falar com o pai dela. Era bonita demais... Precisão de ser conquistada com muito jeitinho e astúcia.

Criou coragem e por isto foi derrubar a resistência do velho: - Quero a mão dela, Seu Teixeira... Levo daqui engatada no lombo do cavalo, mas antes trato de casamento. Garanto na papelada o nome, família, abastança. As diferenças “tem”, é verdade, mas faz mal não, que eu cuido de fazer ela feliz!

O pai já encanecido foi logo desarmado na iniciativa da proposta; de pronto assuntou com o sujeito conversa séria e de muita clareza, duração e honestidade e nem argumentou com a menina para conhecer do seu querer. Ao jovem jeitoso no falatório declarou:- Garrou na minha mão pro aperto é mais valioso que juramento; já que do documento de papel assinado o senhor cuida! Leva a “fia” consigo!... Pra mim oceis tá casado. Cuida da moça, que já tô véio e fatigado; leva consigo antes que o caso ganhe grandiosidade!

Ela se foi, casadinha de novo, sem lamúria ou riso, porque tinha os pés fincados no chão e não tinha querer. Nunca deu de saber a ninguém seus desejos e sentimentos. Acatou com frieza e boca calada a sua destinação de seguir o tal doutor, no lombo do burro. Levou pouca roupa e sonho nenhum. Mesmo porque nunca se deu conta de olhar para o lado, onde pudesse perceber que o rapaz sonhava e sofria. Também nunca olhou para o firmamento e jamais contou estrelas...

Zé Dadaia, o rapaz que cuidava da roça e sonhava com a moça, deu-se por agastado. Olhos entristecidos de quem ama sem ser amado. Emagreceu, definhou, sofreu e quase morreu. Disso compreendeu o arrebatamento a que o homem está sujeito e perdoou o abandono do pai. Sentiu-se um pouco Zé do Dirceu... Do seu mal nunca teve cura; viveu a vida inteirinha a olhar para o céu a contar estrelas. No chão contava os bois todos os dias. Ê boi... Ê boi.. Ê boi na estrada.



Autora: Valéria Áureo



05/05/2008

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

O Cronista

                                      Ilustração: Internet



        Eu sou uma pessoa que não chora. Ou melhor, nunca em público, só mesmo bastante longe de qualquer olhar humano. Ou quando o olhar humano já deixou de existir. É que me habituei a isso, desde que fui trabalhar na agência que cuida dos últimos instantes do sujeito. Caso contrário choraria o tempo inteiro e espantaria os meus fregueses. E depois que arranjei esse trabalho, vejo esta vida assim, resumida na morte; escondido eu choro. Na frente dos outro seria a desgraça total, capaz de arruinar qualquer reputação de durão, construída durante anos a fio. Pelo visto sou eu, a princípio, mais a imensurável mágoa de ver o fim tão de perto. Ver através de quem conheci e amei. Diante do sofrimento foi que me decidi parar de chorar na frente de outros humanos. Há coisas fantásticas, não há? Uma delas é decidir parar de chorar. Entretanto choro perto dos cachorros, mas distante dos homens; não sei por que os dois me comovem tanto.

       Vai-se ao chope de final de semana, para ver a balada de moços e moças; vai-se à praia, ao cinema, ao shopping. Vai-se a todos os lugares. Pois eu prefiro estar em casa recolhido. Lá fora ouço barulhos, que põem toda a gente a saltar. A mim não, que sou tímido. Pouco ou nada se ouve com aquela música feita para explodir o crânio.. Eu não me entusiasmo, já não suporto tanto tais ruídos. Meus ouvidos padecem, quando distantes do meu local de trabalho. Lá, sim, constante bem estar. Ser, ou não ser... Este verso tem ecoado na minha cabeça nos últimos dias. A vida é curta demais, para perdermos tempo com jogos e indecisões, ou barulhos ensurdecedores... Ou é, ou não é. Agradável ou desagradável. Diferentemente disso, não há o que fazer. Antigamente eu era capaz de falar ininterruptamente, durante eternidades, sobre tudo e sobre nada, com qualquer pessoa, inclusive aqueles com tendências esquizofrênicas. Eu gostava de falar muito... Agora que conheço os esquizofrênicos, tenho que aproveitar todas as oportunidades para mostrar que fico sempre a ouvir silenciosamente, durante horas e horas, todos que encontro; ainda mais quando estão condoídos e enlutados. Hora em que falam mais e que precisam que alguém os ouça, sem restrições.

       Agora estou bem melhor; agora escuto muito mais, falo muito menos... Ouço o síndico, o porteiro, as namoradas dos amigos, a prima da tia da vizinha e todas as pessoas que a dado momento partilhem o mesmo espaço comigo. Todas precisam desabafar e eu ganharia um bom dinheiro se cobrasse para ouvir.

       No meu tempo de infância as Igrejas estavam sempre abertas. O sujeito entrava, falava diretamente com Deus, desabafava... Depois disso voltava aliviado para a vida. Agora, não! Não se vê mais uma Igreja disponível. Nem mesmo padre com tempo para ouvir. Sou o ouvinte de todos, mas poucos querem me ouvir. E isto não augura nada de bom para a minha vidinha, não augura não. Será que estou condenado a passar os restos dos meus dias com quem não tem resposta para me dar? E há dias em que tais tormentos são ainda mais verdadeiros. Dei-me ares de cronista, exatamente porque não tinha com quem falar; ninguém disposto a me ouvir. Passei a ter gosto profundo por casos de pessoas comuns; a crônica de cada um, que à minha alma chega, me faz indefeso para contestar o que falam a seu respeito. Absorvo um comentário leve e breve sobre algum fato do cotidiano. Fico comovido; e como já disse às vezes choro escondido. Diante dos cachorros sim; jamais diante dos homens. Depois disso escrevo algo para ser lido enquanto se toma o café da manhã. O motivo de certas confidências, na maioria dos casos, é o pequeno incidente; coisa de pequena monta... A notícia em que ninguém prestou atenção, o acontecimento insignificante, a cena corriqueira. Nessas trivialidades, o que me surpreende é a beleza, a comicidade, os aspectos singulares dos quais eles não se dão conta. Mas eu estou atento a tudo. O tom certo de uma história surpreendente está onde menos se espera; é como "uma conversa aparentemente banal", entre uma baforada de cigarro, uma receita de remédio, a espera de um troco, a fila de idosos no Banco, um guarda-chuva que virou do avesso sob a ventania, um assovio na rua, um tiro na noite. Tudo fala aos meus ouvidos. Eu ouço. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano. Visava ao circunstancial, ao episódico, que provavelmente não se repetirá. Ou, ao contrário, repete-se em toda casa, com todas as pessoas. Nessa perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança, ou num incidente doméstico, torno-me simples espectador. Mas, e eu? Onde fico se imagino que, enquanto observo a vida estou livre dela?

        O único tempo do meu dia que dedico a pensar sobre a morte é quando não ouço mais ninguém. Sempre observo o senhor tomando chope no bar em frente e me vem a ilusão de que ele também não se preocupa com ela. Ao menos com a própria morte. Pode ser até que pense em alguém que já se foi. Mas, é só e provavelmente por poucos segundos. Caso pensasse na sua própria morte, não estaria calmamente de pé fumando e bebendo seu chope. Ele o faz todos os dias. Daí todos os dias não pensar em si mesmo.

        O interessante é que do meu ponto de vista ninguém deveria representar a morte pelo fim, até porque se ouve muito o fato de a morte ser a transcendência do material para o espiritual, mas ainda assim, trabalhando aqui, é o momento único do dia em que não penso nela. A partir das conversas do fim de cada um é que me vem o começo de algumas idéias. Lidando com a morte é que eu penso na vida. E eu vejo que a vida é um espetáculo, como qualquer outro encenado no palco. Cada um tem seu personagem, mas passa a vida inteira decorando o texto. Quem afinal veio para esta vida já sabendo o que fazer? Ninguém! Ninguém conhece nem o papel e nem o enredo. Por isto é que tudo tem que ser improvisado.

          Passam aqui em frente, muitas pessoas em companhia de outras. Antes de chegarem aqui perto elas riem e gargalham, mas quando mais próximas, todas param e olham para dentro; outras mais amedrontadas atravessam a rua. Preferem o outro lado da calçada. Muitas gargalhadas já foram interrompidas por choros e corpos, por velas e coroas, como se fosse o maior desrespeito continuar vivo depois da morte do outro. Tolice! A vida segue como se nada tivesse acontecido. Não há motivos para receios.

         O restante dos meus minutos, eu busco viver como se realmente eu não fosse morrer. Busco viver mesmo que seja diante de uma enorme conta de luz que não poderei pagar, ou andando apressado por essas bucólicas ruas que não me deixam nunca andar sozinho. Há sempre alguém vindo em minha direção, ou partindo comigo, para me fazer companhia. Busco levar sempre comigo a beleza de saber ouvir sobre a vida dos que precisam fazer confidências. Ainda assim, me pego sorrateiramente reclamando, às vezes, daquilo que pode ser consertado. No entanto, naquela funerária, as pessoas vão para resolver algo que não pode ser resolvido. Ao menos estou ali para que desabafem comigo. Se eu faço crônicas de tudo que ouço, paciência... Perdoem a minha indiscrição. Penso eternizar dessa forma os que acabam de partir. Histórias há... Muitas, para serem contadas. Há inclusive as minhas. São inúmeras no meu ofício... Nunca tinha me ocorrido que eu também sou personagem bufão desse teatro. Dei-me conta disto só agora. Sempre me imaginei o crítico da peça teatral. Vendo cada encenação, analisando, fazendo revisão, dando conceito. É... Um crítico teatral era o que eu imaginava ser. Talvez o escritor da peça também eu pudesse desempenhar muito bem. Agora, vejo que não; sou figura dramática, como qualquer outro. Tenho meu papel para interpretar. Mais um pobre personagem saltimbanco desta vida.

       Uma vez fui encarregado pela família de colocar uvas no caixão de um chinês, conforme a tradição. Minha pobreza era maior que a veneração à cerimônia e o grande respeito ao meu ofício. Tenho orgulho do que faço e muita competência. Naquele dia, diante das uvas hesitei entre a responsabilidade e a curiosidade do paladar. Também me lembrei de minha mãe... Acho que pela fábula que sempre me contava: “A raposa e as uvas”. Pois eu vi as uvas, lembrei-me de minha mãe... Achava um desperdício de aquela iguaria ser levada junto com o morto. Levei para minha mãe que nunca tinha provado uvas e achou a fruta muito doce, muito refinada; declarou que uva é “uma coisa do outro mundo”. E não é que ela estava com a razão? Uvas... Quase que iam mesmo para o outro mundo... Outra vez fiquei com os sapatos novinhos do defunto cliente, porque eu mesmo só andava descalço. É que tínhamos o mesmo tamanho de pé. Também achei que aquela coincidência de número de sapatos fosse um sinal celestial. Jurei para a família que os havia colocado no falecido que fez a viagem sem os seus sapatos. Ele que me perdoasse. Tenho certeza que, para onde ele estava indo, não precisaria deles. Ademais, rezei para que seu caminhar fosse sobre nuvens. Tinha certeza que não teria pedras para pisar, pela mansidão do seu semblante. Dava a impressão de homem generoso e despojado. Acatei a mensagem com a certeza de que o morto já tinha chegado ao céu e nem tinha precisado dos sapatos. É nos emolumentos fúnebres que encaramos a cruel realidade (sobretudo a nossa). Concluímos que nada é eterno, que as pessoas vão e por incrível que ainda nos pareça, não levam nada consigo. Nada do que levaram a vida inteira para amealhar. Nem mesmo os sapatos...

        A verdade a que cheguei até agora é que as pessoas realmente são muito frágeis, apressadas e confusas, e eu me incluo nessa louca ciranda de emoções. Também sou um homem triste. Reservo um tempo para chorar, mas só quando não há ninguém por perto, só o meu cachorro. E, quanto àquele sujeito do chope, imagino que ele se sinta melhor que os outros, ou mais tranquilo, sei lá!... É o meu patrão! Deve pensar consigo mesmo que seu negócio é garantido; mais dia, menos dia, todos serão seus clientes nesta cidade tão pequena... Tem certeza absoluta de que vai ficar muito rico e que enterrará todos. Eu continuo como estou. Um coveiro cronista.


Autora: Valéria Áureo
Publicado em: Entrelinhas Literárias - 2011-
Antologia Scortecci de Poesias, Contos e Crônicas.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

O gato elege o seu amor





                                                                 Fonte: Internet



Lembrei-me de dizer dos gatos, os que rolaram nos meus braços infantis, juntamente com sete irmãos, como uma coisa só. Falar o que a observação de sentimentos pueris e alguns anos de maturidade me deram. Gato é só coração. Domesticado... Coração tímido, escondido, mormente num cantinho exclusivo da casa, onde possa estar em paz, com suas reflexões. Os homens deveriam observar mais os felinos. Poderiam aprender muitas coisas. Quem sabe, talvez ocorra o milagre de iluminar um coração a eles fechado? Quem não ama os gatos não sabe o que é entrega absoluta.

Gatos... Sábios para ficarem horas a fio num fio de novelo de lã. Não sei se lã, ou se pelo de gato, ali, acolá... Possibilidade de reflexão ou tédio é o gato que se embola na bola de linha, de jornal, de pelúcia. O gato e o brincar formam uma coisa só. Gatos, apesar disto, são inquilinos inquietantes, talvez por isso mesmo; pela indefinição do ser. Ora é bicho, ora é brinquedo que se mexe de um lado a outro se arrastando manhosamente. 
Gato vive a sua vida e deixa viver, sem exigir nada de ninguém. Por isto pode ser mesmo inquietante; sim, nada é mais incômodo que a autossuficiência dos gatos; o silencioso bastar-se do gato. Vai e vem, entra e sai, sem importunar ninguém. O só pedir a quem amam um amor sem promessas e dívidas. O só amar a quem os merece já é o bastante.

O gato não satisfaz as necessidades do amor possessivo que domina e estabelece regras de convivência humana. Gato coexiste pacificamente; não disputa com o humano, não ameaça, não domina, apenas conquista tudo o que deseja. Compartilha simplesmente o amor. Compartilha a casa; compartilha o sofá, a cama, o banheiro e tudo o mais. Discretamente, como quem não ocupa espaço algum, torna-se o dono. Às vezes flutua, porque não há passos. Passa leve brisa pelos cantos que elege como os seus preferidos... O gato é vento... E não se deixa ser amestrado, nem acata ordens de quem vive dependente e à custa de animais. Não! Gato não. Ele só aceita uma relação de independência e afeto. O mais puro, o mais sincero sentimento expresso no respeito à individualidade. E como não cede ao homem, mesmo quando dele dependente, é chamado de arrogante, egoísta, ou falso, o que não é verdade. Mesmo porque ele nem se incomoda com isso, porque não aceita a falsidade. Gato só admite afeto com troca e respeito pela individualidade. O gato não gosta de alguém porque precisa gostar para se sentir melhor. Ele gosta pelo amor que lhe é próprio, que é dele e ele o dá se quiser e a quem acha que deve dar. Ama determinadas pessoas e ignora outras... O gato devolve ao homem a exata medida da relação que dele recebe. Sábio e espelho. Nada pede a quem não o quer. Melhor dizendo, nem perde seu tempo com quem não o quer...  Passa bem longe.

Ele é exigente com quem ama, mas só depois de muito se certificar de quem se trata. Se a pessoa merece mesmo o seu amor ele se entrega ao toque, ronrona e explode em dança de enroscar-se nas pernas da pessoa amada, buscando carinho. Não pede amor, mas se lhe dá, então ele exige com insinuado disfarce de poder sobreviver sem aquele amor...

Sim, o gato não pede amor, mas o conquista. Nem depende dele para sobreviver. Quando não o tem, ele se basta. Vive num canto qualquer, vagueia pela noite e caça sua comida. Mas, quando sente e reconhece o amor, então ele é capaz de amar e amar muito. Discretamente, porém sem derramar-se. Não é melodramático, exagerado e histérico; é discreto. Se puder passar imperceptível, tanto melhor. Dá o amor na justa medida, com o cuidado de não ultrapassar o espaço de quem o ama. O gato estabelece limites de cordialidade e respeito; não é intruso. Acomoda-se e espera a sua vez.

O gato é o mistério... Leva o homem a se ver... O gato não se relaciona com a aparência do homem. Não com aquilo que está do lado de fora do homem.  Ele vê além do que representa o homem, por dentro e pelo avesso, além do que o homem finge ser. Relaciona-se com a essência. Vê além dos olhos e hospeda-se na alma. Aí é que se dá a conquista, o entregar-se até o fim de seus dias. Entregar-se, conquistar o objeto do amor é que leva tempo. Há que conhecer o seu dono; estudá-lo intimamente, para se assegurar se vale a pena enamorar-se dele. Porque, depois do enamorar-se, não há mais retorno. O compromisso ultrapassará as barreiras da existência. Seu compromisso vai além do tempo... É definitivo; fulminante!

O gato sabe quem o ama... Sabe quem o despreza. Paga na mesma moeda... E se defende do afago amedrontado ou falso esquivando-se. Rejeita aquele que não merece ser amado. A relação dele é com o que está camuflado na alma. O gato vê! Seleciona, julga, elege e sabe quem é merecedor e quem não é. Por isso, quando surge nele um ato de entrega absoluta, de procura pelo colo ou manifestação de afeto, é algo muito verdadeiro, que não pode ser desprezado. É um gesto de confiança que honra quem o recebe, pois significa um julgamento. É como se dissesse. Você merece o meu amor! É aprovação.

O homem imagina que conhece o gato, mas não conhece. O homem não sabe ver o gato, mas o gato sabe ver o homem. Se há desarmonia real ou oculta, o gato sente. Se há solidão, ele sabe e atenua como pode (ele, que enfrenta a própria solidão). Se há pessoas agressivas em torno ou carregadas de maus fluidos, ele se afasta. Por pura intuição. Entrega-se a uns, afasta-se de outros. Só ele decodifica o mistério da alma.

Gato não dá trabalho... Nada diz, não reclama e não cobra nem exige nada. Afasta-se, simplesmente. Quem não sabe "ler" a alma do gato, pensa que é um animal egoísta; não é. É discreto e sabe ser mais conveniente que muitos de nós. Gato é consistente em regras de etiqueta. Sabe a hora certa de se recolher, de sumir e de reaparecer...  É um animal respeitoso. De compostura britânica. Presente ou ausente, ele ensina e manifesta algo que não percebemos. Perto ou longe, olhando ou fingindo não ver, ele está comunicando códigos que quase nunca sabemos compreender.

O gato é enigma sim... Vê mais do que vemos... E vê dentro e além de nós. Ele relaciona-se com fluidos, auras, divindades, espíritos e todo o invisível aos nossos olhos. Protege-nos daquilo que nem damos conta existir. O gato é mediúnico, bruxo, alquimista, feiticeiro, guardião e analista. É um exemplo de meditação, sempre estável ao nosso lado, a ensinar calma, atenção, silêncio e mistério. O gato é um monge tibetano à disposição de quem o saiba perceber. Monge, sim, refinado, taciturno, contemplativo e circunspecto, a nos devolver as indagações temerosas, cujas respostas temos medo de descobrir. O gato sempre responde com uma nova questão, pelo simples modo de olhar, remetendo-nos à observação permanente do real, à busca incessante, à certeza de que cada segundo contém a possibilidade de obter respostas e descobrir soluções...

O gato é um exemplo diário de afeto verdadeiro e fiel. Suas manifestações são íntimas e profundas. Exige recolhimento, entrega, atenção, simplesmente por se deixar ficar aos nossos pés. Gatos deixam-se amar... Pessoas desatentas e indiferentes não agradam os gatos. Pessoas barulhentas e egoístas os irritam... Vive do verdadeiro e não se ilude com aparências. Não se deixa enganar por nada e por ninguém. Gato dorme o sono dos justos, dos que vivem em paz e harmonia com a Terra e as outras criaturas. Ensina a espreguiçar-se e a ter prontidão para a ação imediata. Um perfeito professor de Pilates. O gato sai do sono para o máximo de combate; tensão e elasticidade num segundo... Gato é sensualidade. Salto, sono, silêncio, descanso, prontidão e ação. Gato é introversão. Gato é contato com o mistério, com a sapiência, com a escuridão, com a sombra e finalmente com a luz!..

Autora: Valéria Áureo