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quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017
O Jardim de Flores Brancas
Primeiro Canteiro de Palavras, ou Primeiro Capítulo
Para ter exatidão na narrativa e ser positivo sobre quem falo, o nome dele é Seu Lopes. Assim evito qualquer engano de sua pessoa. Pois foi muita vez que fez isso de desaparecer quando navegava o mar, coisa com que ninguém da família se ajeitava. Mas isso não é hábito de agora, que é seu tempo de maturação e barba branca; tempo de lavrar a terra e se meter lá pelos matos dos confins de Minas, bem na profundeza do grotão, como se não quisesse mais ser avistado. É que já foi ajeitado assim, desde novo, em navio e porto que faziam o danado do marinheiro perder o rumo de casa, à custa de muitos meses sem mulher. Já maduro, abandonou o mar e dedicou-se à terra, mas não abandonou os vícios.
Capítulo II
Capítulo III
Aquilo foi demais para a cobiça do populacho que crescia os olhos pra cima dele. Vida boa, prosperando no sítio... Quem diria... Aquele atoleimado... E ainda dizendo que um dia seria pastor. Pois o povo não aguentou; e o povo danado a falar, falar, falar. Imaginem... Pastor! Até alarde de recreio no campo, um besta... Pois é, repetiam aqui e ali que o caseiro deu de levar a molecada toda, o pai, a sogra, o cachorro e a mulher; tudo enfiado no velho fusca, para fazer uma galinhada no domingo, coisa, aliás, que contrariava Seu Lopes e despertava a inveja da inconformada Maria e o resto da cidade. Vinha tudo empoleirado no “torovão” azul, fazendo algazarra pela poeira da estrada, mesmo a muito contragosto do coitado do patrão. É que não tinha sustentação a reclamação do senhor de não querer o povo todo embocado no sítio, porque o cabra nem era dono do seu querer. Tudo cabia na decisão da sua mulher... Eta muié mandona! A dona insistia em dia de domingo e lazer na preguiça, como fazem as patroas. Mas só depois da reza no templo, porque homem que se preza é respeitoso a Deus. E o homem obedecia.
Quarto canteiro de palavras ou
Pois não é que o fulano de cidade grande, ruivo e de sardas no corpo inteiro, desarticulado no baixo porte e nos movimentos, desalinhado nos dentes, não se ajeitou na roça? Pois é! Não se ajeitou, nem por insistência, nem por destinação de conforto que o parente ofertou a ele. Pura misericórdia de quem o acolhia, mas o danado do cabra era de vontade curta para trabalhar. Não tinha esforço para enfrentar o chão. Só via rede e viola. O senhor Lopes, com quem o primo nunca teve parecença, deu-se por pai do indivíduo, só para ajeitar a vida do infeliz, por devoção à família e caridade aos parentes mais desvalidos. Deu salário, moradia, conforto de cidade pequena e tranquila e uns por fora pro camarada se distrair... Mas o cara foi arranjar desafeto naquelas cercanias, achando que a vida estava muito sem graça, parada e morna naquelas distâncias de mato alto. A mão do sujeito era lisa feito mão de moça e secava tudo o que ele tocava. Morria o mato, morriam as plantas, esturricavam as flores, definhava a cerca viva. Nem o capim do pasto aguentava. E o danado não se ajeitou de jeito nenhum na roça. Enfiou-se na Igreja, pois muito pouco se dava com as terras e suas exigências de trato. Porque terra demanda cuidados, mãos grossas, apego e devoção e o citadino não tinha uma coisa nem outra. Sofria de indolência e dores no corpo e não tinha a mão benta para acarinhar o solo e as plantas. O engano foi ter ido para a roça com intenção de plantar buchas para negociar em São Paulo. É que o rapaz não tinha nenhuma dedicação ao serviço e nem boa vontade em ser grato ao parente. Depois de mês e pouco rematar que a terra não era jeitosa pra tal espécie de planta, o fulano se desafeiçoou da obrigação, dando graças a Deus e abanando o chapéu de palha. Pois é, enfiou-se na igreja, mas não foi por devoção ou temor a Deus. Muito fervor mesmo foi por preguiça. Preferiu reza e violão na cidade o dia inteiro, deixando a terra do primo Lopes ao abandono, enfraquecendo as ideias do empenho de acordar cedo, regar, cuidar, ajeitar, capinar... Deu-se por satisfeito com a vida de cantador, rezador e andarilho.
Pois então. Deu-se que o sujeito sumiu!...
terça-feira, 21 de fevereiro de 2017
Coisa de afeição ou amor à primeira vista
Fonte: Internet
Era apenas um menino da
fazenda vizinha, visto aqui e ali, numa aprumação franzina, escanelado por
falta de apreço aos doces e resistência à comida. Falta de apetite e aspiração.
Perna fina. Porte de menino que ia crescendo desjeitado no prumo de duas vigas
inclinadas para frente feito bambu, arqueado de peso e responsabilidade. Foi
sempre miúdo no crescimento; assim mesmo era sujeito bom de tarefas.
Difícil explicar a força que saía daqueles dois braços quebradiços de gravetos.
É que já se tinha por chefe da casa desde que o pai se embrenhou mundo afora,
deixando a mãe e a roça pra Deus cuidar. Dizem que foi coisa de amor
desconsiderado por uma mulher casada e que disso só recolheu estrago pra vida.
Deixou pra trás a casa e os filhos sem qualquer consideração ou piedade.
Declarava que o amor havia corrompido os sentimentos pela família e precisou
seguir seu destino. O menino, até então, não podia compreender tal sentimento.
Sobrou ódio pelo pai. De tão pequeno, de tão sem pai, virou Zé Dadaia; Zé,
filho da Dária, embora também fosse filho do Dirceu. Decidiu pela orfandade
paterna, de tanto rancor que guardou.
De repente o moleque miúdo deu uns volteios,
uns rodopios no tamanho das pernas, os braços estirando a pele e os ossos num
arrebatamento só. O pescoço encompridando para cima, o queixo alargando e
arrastando os dentes; e do nada se deu arrancado no crescimento. Ficou moço de
traços esguios. Já rapaz foi se empregar na fazenda do Seu Teixeira, por
consideração ao padrinho e afeição à menina que, de soslaio acompanhava crescer
como flor de manacá. Deu de sonhar acordado, acometido de mal que afeta os
desavisados... O amor o perturbou tanto que de dia se perdia em devaneios e à
noite não dormia. Ficou cativo das nuvens e tormentos que pontilhavam a alma
que não era dela; não sendo dela, doía tanto que de mais ninguém seria. A alma
ora ficava, ora fugia, meio sofrer, meio esperar. Mais que o amor, a alma
morria... Iniciado rapaz já se perdia em dançar com a moça de cintura fina; ao
menos em sonhos, quando se estirava no capinzal seco. Deu também de contar as
estrelas, hábito que tinha com a rês no pasto. Uma, duas, dez... Cem, mil... Com as
estrelas se perdia em número e ordenamento no céu, tentando alinhar os
distantes pontos emaranhados no infinito, como se fosse o rebanho. Ora para a
esquerda, ora para a direita, os olhos não tinham destino certo, nem sabia ele a
que distância a vista teria que ir... Dos números fugia para as palavras, os
cheiros, o vento. Quem procura estrelas sempre está perto do céu; mas não era
ali que a moça vivia. O rapaz, no baile da festa de Reis, tencionava tomar tento
pra vigilância daquela formosura, como se houvesse destinação de ela ser sua e de
mais ninguém... Na imaginação deu-se por avexado diante do vestido rosa dela,
graça cheia de fitas nos cabelos. Ele tão simples; ela, capricho e cabedal! Viu
pelo salão gente embesteirada de manias, muitos empertigados em roupa de
qualidade. Ele tímido, reduzido no orgulho e vaidade, sempre de olho nela. Pensava
muito pouco de si: muita sela para pouca montaria. Desavisado do destino, não
custava nada sonhar...
Zé Dadaia dormiu no
mormaço do dia, no intervalo da refeição e o eito, estirado no capinzal... Na
imaginação desenvolveu a dança, respeitoso, aprumando o pescoço para cima dos
ombros dela, só para sentir o aroma de flor nos cabelos. Eta devaneio presunçoso,
meu Deus! Acordado tinha conta de que era ninguém perto dela e nem em sonho a
alcançava...
De longe, agachado na
estrada, um caboclo toma pinga, as pernas leves e a consciência pesada, porque
bebe demais, peca em pensamento e espicha os olhos pra moça que anda toda
levezinha no chão batido de terra. Um outro agarrado na viola consola uma lua
de parto de madrugada quase perdida e suspira só por conta da solidão. Um outro
ainda olha para todas que vêm do campo e não se perde em nenhuma. Lá longe,
onde antes se ouviu a toada de bois, segue a vida na rotina, na luta no campo,
no corte do capim; e mais um dia se encaixou no crepúsculo.
Agora é noite nascente
de poucos sons. Um caboclo acocorado repousa nas pernas dobradas por canseira e
desilusão. Canseira, copo e golada de bagaceira. E vai chegando de olhos
perdidos nos olhos e pernas de todas elas que voltam para casa. O rosto reflete
um cinza fumacento no luminar do candeeiro e elas arriando as pestanas pra
encobrir a vergonha e pra noite alumiar o sonho. A noite encobre a passagem e
leva cada um ao seu destino...
A velha gaita
choraminga fazendo a moça dormir. O pai percebe os suspiros e o perigo de se
ter donzela em casa com tanto caboclo rondando. Ele envelheceu viúvo, cuidando
da brasa na fornalha, fazendo as vezes da mãe; atento com a filha. Paciente... Cuida para o alimento ir chegando ao
sabor do frango com quiabo. Apaga a chama e deixa a brasa para a panela não
queimar. Dia sim, outro também manda tirar o cisco da tapera velha, cuida de ajeitar
a lenha. Pouco tem que fazer quando a solidão se acomoda junto do coração. O
que pode é se embalar com as cantorias do rádio na voz de Nelson Gonçalves e
algumas recordações da mocidade. Toda manhã repete a vidinha assim: vê o padrão
das vacas novas, decide o que matar e o que vender; o que plantar e o que
colher. Dá direção da lida... Opina, atende, responsabiliza, reforça e cobra.
Na roça o rapagão que
conta as estrelas é quem trabalha, enquanto o velho decide. Solta os bezerros
no barracão. Cuida dos matos, ajeita a lavoura: roça, capina, cavouca, colhe,
seca, bate, recolhe, queima, amontoa. O velho não aguenta mais a tirança de
leite. No mais é conversar e pensar na filha que vai ficar sozinha naquelas
lonjuras; preocupa porque Deus não lhe deu filho homem. Deus também foi lhe
tirando os dias de vida devagarinho, devagarinho, um segundo depois do outro...
Foi também lhe definhando os músculos como se esvaziasse um latão de leite. Foi
lhe retirando os dentes, os cabelos, a alegria... Ficou desenhado em magreza de
pele e osso quase, quando Deus lhe tirou a mulher.
De longe o velho vislumbra
o fogo que come todas as matas das cercanias. Queimada consumindo tudo. Conclui
que o cabra que faz isso com a Terra não é humano...
Um dia surge um mancebo
engravatado. Chegando mansinho de curioso, conversinha e bigodinho fino
ocupando a boca ardilosa. O pai arreliado com aquela chegança de forasteiro não
se mostra satisfeito. É que a moça da vizinhança já sentia a dor de menino novo
apontando pra nascer e confirmando a desonra. O sujeito autor da desgraceira
nem era das redondezas. Pois fugiu a passos largos pra se afastar ligeiro da
justiça de garrucha. Coitado do compadre Setembrino! Queria isso não!
O velho queria isso pra
filha não! Melhor abreviar com a situação arriscada de dar tempo ao tempo e
deixar moça em casa, encadeirada e de boniteza crescente. Flor
exposta ao enxame, pensava.
Zeloso sabia que honra
de donzela carece de constante sentinela. Uma piscadela e a desonra entrava pela porta ou pela janela. Porta, janela, tudo carece de tramela. Ainda mais... A garrucha sempre debaixo do travesseiro era prevenção e cuidado que podia ter. O dado mais relevante é que já se
sentia vivido demais pra tanta prevenção, sabendo que não ia durar para sempre.
Deu de ficar cansado no peito e pouca respiração. Não aguentava escada e nem latão de leite.
Tudo passava pela cabeça do velho enquanto livrava a filha dos moços que chegavam de mansinho. Vinham rasteiros que nem cobra peçonhenta.
Do seu lado o sujeito de fala mansa, doutor, de própria declaração pensava: - vai ser do jeitinho que estou com vontade! Mas a menina é arisca, meio pra aqui, meio pra ali; parte criança, parte moça. E nem se deixa avistar na varanda. Resguarda no quarto a boniteza da idade. O doutorzinho arredou até a Igreja, assuntando, tirando uma olhada de longe, nas formas, na boca com o desenho do riso dela sob o véu. Tocaiou na hora da missa, sondou aqui e ali e decidiu, confiscado de fome e desejo falar com o pai dela. Era bonita demais... Precisão de ser conquistada com muito jeitinho e astúcia.
Tudo passava pela cabeça do velho enquanto livrava a filha dos moços que chegavam de mansinho. Vinham rasteiros que nem cobra peçonhenta.
Do seu lado o sujeito de fala mansa, doutor, de própria declaração pensava: - vai ser do jeitinho que estou com vontade! Mas a menina é arisca, meio pra aqui, meio pra ali; parte criança, parte moça. E nem se deixa avistar na varanda. Resguarda no quarto a boniteza da idade. O doutorzinho arredou até a Igreja, assuntando, tirando uma olhada de longe, nas formas, na boca com o desenho do riso dela sob o véu. Tocaiou na hora da missa, sondou aqui e ali e decidiu, confiscado de fome e desejo falar com o pai dela. Era bonita demais... Precisão de ser conquistada com muito jeitinho e astúcia.
Criou coragem e por isto foi
derrubar a resistência do velho: - Quero a mão dela, Seu Teixeira... Levo daqui
engatada no lombo do cavalo, mas antes trato de casamento. Garanto na papelada o nome,
família, abastança. As diferenças “tem”, é verdade, mas faz mal não, que eu
cuido de fazer ela feliz!
O pai já encanecido foi
logo desarmado na iniciativa da proposta; de pronto assuntou com o sujeito
conversa séria e de muita clareza, duração e honestidade e nem argumentou com a menina
para conhecer do seu querer. Ao jovem jeitoso no falatório declarou:- Garrou na
minha mão pro aperto é mais valioso que juramento; já que do documento de papel
assinado o senhor cuida! Leva a “fia” consigo!... Pra mim oceis tá casado.
Cuida da moça, que já tô véio e fatigado; leva consigo antes que o caso ganhe
grandiosidade!
Ela se foi, casadinha de novo, sem lamúria
ou riso, porque tinha os pés fincados no chão e não tinha querer. Nunca deu de saber a ninguém
seus desejos e sentimentos. Acatou com frieza e boca calada a sua destinação de seguir o tal doutor, no lombo do burro. Levou pouca
roupa e sonho nenhum. Mesmo porque nunca se deu conta de olhar para o lado,
onde pudesse perceber que o rapaz sonhava e sofria. Também nunca olhou para o firmamento e jamais contou estrelas...
Zé Dadaia, o rapaz que
cuidava da roça e sonhava com a moça, deu-se por agastado. Olhos entristecidos de quem ama sem ser amado. Emagreceu, definhou,
sofreu e quase morreu. Disso compreendeu o arrebatamento a que o homem está sujeito e perdoou o
abandono do pai. Sentiu-se um pouco Zé do Dirceu... Do seu mal nunca teve cura;
viveu a vida inteirinha a olhar para o céu a contar estrelas. No chão contava os bois todos os dias. Ê boi... Ê boi.. Ê boi na estrada.
Autora: Valéria Áureo
05/05/2008
quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017
O Cronista
Ilustração: Internet
Eu sou uma pessoa que não chora. Ou
melhor, nunca em público, só mesmo bastante longe de qualquer olhar humano. Ou
quando o olhar humano já deixou de existir. É que me habituei a isso, desde que
fui trabalhar na agência que cuida dos últimos instantes do sujeito. Caso
contrário choraria o tempo inteiro e espantaria os meus fregueses. E depois que
arranjei esse trabalho, vejo esta vida assim, resumida na morte; escondido eu
choro. Na frente dos outro seria a desgraça total, capaz de arruinar qualquer
reputação de durão, construída durante anos a fio. Pelo visto sou eu, a
princípio, mais a imensurável mágoa de ver o fim tão de perto. Ver através de
quem conheci e amei. Diante do sofrimento foi que me decidi parar de chorar na
frente de outros humanos. Há coisas fantásticas, não há? Uma delas é decidir
parar de chorar. Entretanto choro perto dos cachorros, mas distante dos homens;
não sei por que os dois me comovem tanto.
Vai-se ao chope de final de semana, para
ver a balada de moços e moças; vai-se à praia, ao cinema, ao shopping. Vai-se a
todos os lugares. Pois eu prefiro estar em casa recolhido. Lá fora ouço
barulhos, que põem toda a gente a saltar. A mim não, que sou tímido. Pouco ou
nada se ouve com aquela música feita para explodir o crânio.. Eu não me
entusiasmo, já não suporto tanto tais ruídos. Meus ouvidos padecem, quando
distantes do meu local de trabalho. Lá, sim, constante bem estar. Ser, ou não
ser... Este verso tem ecoado na minha cabeça nos últimos dias. A vida é curta demais,
para perdermos tempo com jogos e indecisões, ou barulhos ensurdecedores... Ou
é, ou não é. Agradável ou desagradável. Diferentemente disso, não há o que
fazer. Antigamente eu era capaz de falar ininterruptamente, durante
eternidades, sobre tudo e sobre nada, com qualquer pessoa, inclusive aqueles
com tendências esquizofrênicas. Eu gostava de falar muito... Agora que conheço
os esquizofrênicos, tenho que aproveitar todas as oportunidades para mostrar
que fico sempre a ouvir silenciosamente, durante horas e horas, todos que
encontro; ainda mais quando estão condoídos e enlutados. Hora em que falam mais
e que precisam que alguém os ouça, sem restrições.
Agora estou bem melhor; agora escuto
muito mais, falo muito menos... Ouço o síndico, o porteiro, as namoradas dos
amigos, a prima da tia da vizinha e todas as pessoas que a dado momento
partilhem o mesmo espaço comigo. Todas precisam desabafar e eu ganharia um bom
dinheiro se cobrasse para ouvir.
No meu tempo de infância as Igrejas
estavam sempre abertas. O sujeito entrava, falava diretamente com Deus,
desabafava... Depois disso voltava aliviado para a vida. Agora, não! Não se vê
mais uma Igreja disponível. Nem mesmo padre com tempo para ouvir. Sou o ouvinte
de todos, mas poucos querem me ouvir. E isto não augura nada de bom para a
minha vidinha, não augura não. Será que estou condenado a passar os restos dos
meus dias com quem não tem resposta para me dar? E há dias em que tais
tormentos são ainda mais verdadeiros. Dei-me ares de cronista, exatamente
porque não tinha com quem falar; ninguém disposto a me ouvir. Passei a ter
gosto profundo por casos de pessoas comuns; a crônica de cada um, que à minha alma chega, me faz indefeso para
contestar o que falam a seu respeito. Absorvo um comentário leve e breve sobre
algum fato do cotidiano. Fico comovido; e como já disse às vezes choro
escondido. Diante dos cachorros sim; jamais diante dos homens. Depois disso
escrevo algo para ser lido enquanto se toma o café da manhã. O motivo de
certas confidências, na maioria dos casos, é o pequeno incidente; coisa de
pequena monta... A notícia em que ninguém prestou atenção, o acontecimento
insignificante, a cena corriqueira. Nessas trivialidades, o que me surpreende é
a beleza, a comicidade, os aspectos singulares dos quais eles não se dão conta.
Mas eu estou atento a tudo. O tom certo de uma história surpreendente está onde
menos se espera; é como "uma
conversa aparentemente banal", entre uma baforada de cigarro, uma
receita de remédio, a espera de um troco, a fila de idosos no Banco, um
guarda-chuva que virou do avesso sob a ventania, um assovio na rua, um tiro na
noite. Tudo fala aos meus ouvidos. Eu ouço. Eu pretendia apenas recolher da
vida diária algo de seu disperso conteúdo humano. Visava ao circunstancial, ao
episódico, que provavelmente não se repetirá. Ou, ao contrário, repete-se em
toda casa, com todas as pessoas. Nessa perseguição do acidental, quer num
flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança, ou num incidente
doméstico, torno-me simples espectador. Mas, e eu? Onde fico se imagino que,
enquanto observo a vida estou livre dela?
O único tempo do meu dia que dedico a
pensar sobre a morte é quando não ouço mais ninguém. Sempre observo o senhor
tomando chope no bar em frente e me vem a ilusão de que ele também não se
preocupa com ela. Ao menos com a própria morte. Pode ser até que pense em
alguém que já se foi. Mas, é só e provavelmente por poucos segundos. Caso
pensasse na sua própria morte, não estaria calmamente de pé fumando e bebendo
seu chope. Ele o faz todos os dias. Daí todos os dias não pensar em si mesmo.
O interessante é que do meu ponto de
vista ninguém deveria representar a morte pelo fim, até porque se ouve muito o
fato de a morte ser a transcendência do material para o espiritual, mas ainda
assim, trabalhando aqui, é o momento único do dia em que não penso nela. A
partir das conversas do fim de cada um é que me vem o começo de algumas idéias.
Lidando com a morte é que eu penso na vida. E eu vejo que a vida é um espetáculo,
como qualquer outro encenado no palco. Cada um tem seu personagem, mas passa a
vida inteira decorando o texto. Quem afinal veio para esta vida já sabendo o
que fazer? Ninguém! Ninguém conhece nem o papel e nem o enredo. Por isto é que
tudo tem que ser improvisado.
Passam aqui em frente, muitas pessoas
em companhia de outras. Antes de chegarem aqui perto elas riem e gargalham, mas
quando mais próximas, todas param e olham para dentro; outras mais amedrontadas
atravessam a rua. Preferem o outro lado da calçada. Muitas gargalhadas já foram
interrompidas por choros e corpos, por velas e coroas, como se fosse o maior
desrespeito continuar vivo depois da morte do outro. Tolice! A vida segue como
se nada tivesse acontecido. Não há motivos para receios.
O restante dos meus minutos, eu busco
viver como se realmente eu não fosse morrer. Busco viver mesmo que seja diante
de uma enorme conta de luz que não poderei pagar, ou andando apressado por
essas bucólicas ruas que não me deixam nunca andar sozinho. Há sempre alguém
vindo em minha direção, ou partindo comigo, para me fazer companhia. Busco
levar sempre comigo a beleza de saber ouvir sobre a vida dos que precisam fazer
confidências. Ainda assim, me pego sorrateiramente reclamando, às vezes, daquilo
que pode ser consertado. No entanto, naquela funerária, as pessoas vão para
resolver algo que não pode ser resolvido. Ao menos estou ali para que desabafem
comigo. Se eu faço crônicas de tudo que ouço, paciência... Perdoem a minha
indiscrição. Penso eternizar dessa forma os que acabam de partir. Histórias
há... Muitas, para serem contadas. Há inclusive as minhas. São inúmeras no meu
ofício... Nunca tinha me ocorrido que eu também sou personagem bufão desse
teatro. Dei-me conta disto só agora. Sempre me imaginei o crítico da peça
teatral. Vendo cada encenação, analisando, fazendo revisão, dando conceito.
É... Um crítico teatral era o que eu imaginava ser. Talvez o escritor da peça
também eu pudesse desempenhar muito bem. Agora, vejo que não; sou figura
dramática, como qualquer outro. Tenho meu papel para interpretar. Mais um pobre
personagem saltimbanco desta vida.
Uma vez fui encarregado pela família de
colocar uvas no caixão de um chinês, conforme a tradição. Minha pobreza era
maior que a veneração à cerimônia e o grande respeito ao meu ofício. Tenho
orgulho do que faço e muita competência. Naquele dia, diante das uvas hesitei
entre a responsabilidade e a curiosidade do paladar. Também me lembrei de minha
mãe... Acho que pela fábula que sempre me contava: “A raposa e as uvas”. Pois
eu vi as uvas, lembrei-me de minha mãe... Achava um desperdício de aquela
iguaria ser levada junto com o morto. Levei para minha mãe que nunca tinha
provado uvas e achou a fruta muito doce, muito refinada; declarou que uva é
“uma coisa do outro mundo”. E não é que ela estava com a razão? Uvas... Quase
que iam mesmo para o outro mundo... Outra vez fiquei com os sapatos novinhos do
defunto cliente, porque eu mesmo só andava descalço. É que tínhamos o mesmo
tamanho de pé. Também achei que aquela coincidência de número de sapatos fosse
um sinal celestial. Jurei para a família que os havia colocado no falecido que
fez a viagem sem os seus sapatos. Ele que me perdoasse. Tenho certeza que, para
onde ele estava indo, não precisaria deles. Ademais, rezei para que seu
caminhar fosse sobre nuvens. Tinha certeza que não teria pedras para pisar,
pela mansidão do seu semblante. Dava a impressão de homem generoso e despojado.
Acatei a mensagem com a certeza de que o morto já tinha chegado ao céu e nem
tinha precisado dos sapatos. É nos emolumentos fúnebres que encaramos a cruel
realidade (sobretudo a nossa). Concluímos que nada é eterno, que as pessoas vão
e por incrível que ainda nos pareça, não levam nada consigo. Nada do que levaram
a vida inteira para amealhar. Nem mesmo os sapatos...
A verdade a que cheguei até
agora é que as pessoas realmente são muito frágeis, apressadas e confusas, e eu
me incluo nessa louca ciranda de emoções. Também sou um homem triste. Reservo
um tempo para chorar, mas só quando não há ninguém por perto, só o meu
cachorro. E, quanto àquele sujeito do chope, imagino que ele se sinta melhor
que os outros, ou mais tranquilo, sei lá!... É o meu patrão! Deve pensar
consigo mesmo que seu negócio é garantido; mais dia, menos dia, todos serão
seus clientes nesta cidade tão pequena... Tem certeza absoluta de que vai ficar
muito rico e que enterrará todos. Eu continuo como estou. Um coveiro cronista.
Autora: Valéria Áureo
Publicado em: Entrelinhas
Literárias - 2011-
Antologia Scortecci de Poesias, Contos e Crônicas.
segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017
O gato elege o seu amor
Lembrei-me
de dizer dos gatos, os que rolaram nos meus braços infantis, juntamente com
sete irmãos, como uma coisa só. Falar o que a observação de sentimentos pueris
e alguns anos de maturidade me deram. Gato é só coração. Domesticado... Coração
tímido, escondido, mormente num cantinho exclusivo da casa, onde possa estar em
paz, com suas reflexões. Os homens deveriam observar mais os felinos. Poderiam
aprender muitas coisas. Quem sabe, talvez ocorra o milagre de iluminar um
coração a eles fechado? Quem não ama os gatos não sabe o que é entrega
absoluta.
Gatos...
Sábios para ficarem horas a fio num fio de novelo de lã.
Não sei se lã, ou se pelo de gato, ali, acolá... Possibilidade de reflexão ou
tédio é o gato que se embola na bola de linha, de jornal, de pelúcia. O gato e
o brincar formam uma coisa só. Gatos, apesar disto, são inquilinos inquietantes,
talvez por isso mesmo; pela indefinição do ser. Ora é bicho, ora é brinquedo que se
mexe de um lado a outro se arrastando manhosamente.
Gato vive a sua vida e deixa viver, sem exigir nada de ninguém. Por isto pode ser mesmo inquietante; sim, nada é mais incômodo que a autossuficiência dos gatos; o silencioso bastar-se do gato. Vai e vem, entra e sai, sem importunar ninguém. O só pedir a quem amam um amor sem promessas e dívidas. O só amar a quem os merece já é o bastante.
Gato vive a sua vida e deixa viver, sem exigir nada de ninguém. Por isto pode ser mesmo inquietante; sim, nada é mais incômodo que a autossuficiência dos gatos; o silencioso bastar-se do gato. Vai e vem, entra e sai, sem importunar ninguém. O só pedir a quem amam um amor sem promessas e dívidas. O só amar a quem os merece já é o bastante.
O
gato não satisfaz as necessidades do amor possessivo que domina e estabelece
regras de convivência humana. Gato coexiste pacificamente; não disputa com o humano, não
ameaça, não domina, apenas conquista tudo o que deseja. Compartilha simplesmente o amor. Compartilha a casa;
compartilha o sofá, a cama, o banheiro e tudo o mais. Discretamente, como quem
não ocupa espaço algum, torna-se o dono. Às vezes flutua, porque não há passos. Passa leve brisa
pelos cantos que elege como os seus preferidos... O gato é vento... E não se
deixa ser amestrado, nem acata ordens de quem vive dependente e à custa de
animais. Não! Gato não. Ele só aceita uma relação de independência e afeto. O
mais puro, o mais sincero sentimento expresso no respeito à individualidade. E
como não cede ao homem, mesmo quando dele dependente, é chamado de arrogante,
egoísta, ou falso, o que não é verdade. Mesmo porque ele nem se incomoda com
isso, porque não aceita a falsidade. Gato só admite afeto com troca e respeito
pela individualidade. O gato não gosta de alguém porque precisa gostar para se
sentir melhor. Ele gosta pelo amor que lhe é próprio, que é dele e ele o dá se
quiser e a quem acha que deve dar. Ama determinadas pessoas e ignora outras...
O gato devolve ao homem a exata medida da relação que dele recebe. Sábio e
espelho. Nada pede a quem não o quer. Melhor dizendo, nem perde seu tempo
com quem não o quer... Passa bem longe.
Ele
é exigente com quem ama, mas só depois de muito se certificar de quem se trata.
Se a pessoa merece mesmo o seu amor ele se entrega ao toque, ronrona e explode
em dança de enroscar-se nas pernas da pessoa amada, buscando carinho. Não pede amor, mas se lhe
dá, então ele exige com insinuado disfarce de poder sobreviver sem aquele amor...
Sim,
o gato não pede amor, mas o conquista. Nem depende dele para sobreviver. Quando não o tem, ele
se basta. Vive num canto qualquer, vagueia pela noite e caça sua comida. Mas,
quando sente e reconhece o amor, então ele é capaz de amar e amar muito.
Discretamente, porém sem derramar-se. Não é melodramático, exagerado e histérico; é discreto. Se puder
passar imperceptível, tanto melhor. Dá o amor na justa medida, com o cuidado de
não ultrapassar o espaço de quem o ama. O gato estabelece limites de
cordialidade e respeito; não é intruso. Acomoda-se e espera a sua vez.
O
gato é o mistério... Leva o homem a se ver... O gato não se relaciona com a
aparência do homem. Não com aquilo que está do lado de fora do homem. Ele
vê além do que representa o homem, por dentro e pelo avesso, além do que o
homem finge ser. Relaciona-se com a essência. Vê além dos olhos e hospeda-se na
alma. Aí é que se dá a conquista, o entregar-se até o fim de seus dias.
Entregar-se, conquistar o objeto do amor é que leva tempo. Há que conhecer o
seu dono; estudá-lo intimamente, para se assegurar se vale a pena enamorar-se
dele. Porque, depois do enamorar-se, não há mais retorno. O compromisso
ultrapassará as barreiras da existência. Seu compromisso vai além do tempo... É definitivo;
fulminante!
O
gato sabe quem o ama... Sabe quem o despreza. Paga na mesma moeda... E se
defende do afago amedrontado ou falso esquivando-se. Rejeita aquele que não merece ser amado.
A relação dele é com o que está camuflado na alma. O gato vê! Seleciona, julga,
elege e sabe quem é merecedor e quem não é. Por isso, quando surge nele um ato
de entrega absoluta, de procura pelo colo ou manifestação de afeto, é algo
muito verdadeiro, que não pode ser desprezado. É um gesto de confiança que
honra quem o recebe, pois significa um julgamento. É como se dissesse. Você
merece o meu amor! É aprovação.
O
homem imagina que conhece o gato, mas não conhece. O homem não sabe ver o gato,
mas o gato sabe ver o homem. Se há desarmonia real ou oculta, o gato sente. Se
há solidão, ele sabe e atenua como pode (ele, que enfrenta a própria solidão).
Se há pessoas agressivas em torno ou carregadas de maus fluidos, ele se afasta.
Por pura intuição. Entrega-se a uns, afasta-se de outros. Só ele decodifica o
mistério da alma.
Gato
não dá trabalho... Nada diz, não reclama e não cobra nem exige nada. Afasta-se,
simplesmente. Quem não sabe "ler" a alma do gato, pensa que é um
animal egoísta; não é. É discreto e sabe ser mais conveniente que muitos de
nós. Gato é consistente em regras de etiqueta. Sabe a hora certa de se
recolher, de sumir e de reaparecer... É um animal respeitoso. De
compostura britânica. Presente ou ausente, ele ensina e manifesta algo que não
percebemos. Perto ou longe, olhando ou fingindo não ver, ele está comunicando
códigos que quase nunca sabemos compreender.
O
gato é enigma sim... Vê mais do que vemos... E vê dentro e além de nós. Ele relaciona-se
com fluidos, auras, divindades, espíritos e todo o invisível aos nossos olhos.
Protege-nos daquilo que nem damos conta existir. O gato é mediúnico, bruxo,
alquimista, feiticeiro, guardião e analista. É um exemplo de meditação, sempre estável
ao nosso lado, a ensinar calma, atenção, silêncio e mistério. O gato é um monge
tibetano à disposição de quem o saiba perceber. Monge, sim, refinado,
taciturno, contemplativo e circunspecto, a nos devolver as indagações
temerosas, cujas respostas temos medo de descobrir. O gato sempre responde com
uma nova questão, pelo simples modo de olhar, remetendo-nos à observação
permanente do real, à busca incessante, à certeza de que cada segundo contém a
possibilidade de obter respostas e descobrir soluções...
O
gato é um exemplo diário de afeto verdadeiro e fiel. Suas manifestações são
íntimas e profundas. Exige recolhimento, entrega, atenção, simplesmente por se
deixar ficar aos nossos pés. Gatos deixam-se amar... Pessoas desatentas e
indiferentes não agradam os gatos. Pessoas barulhentas e egoístas os irritam...
Vive do verdadeiro e não se ilude com aparências. Não se deixa enganar por nada
e por ninguém. Gato dorme o sono dos justos, dos que vivem em paz e harmonia
com a Terra e as outras criaturas. Ensina a espreguiçar-se e a ter prontidão
para a ação imediata. Um perfeito professor de Pilates. O gato sai do sono para
o máximo de combate; tensão e elasticidade num segundo... Gato é sensualidade.
Salto, sono, silêncio, descanso, prontidão e ação. Gato é introversão. Gato é
contato com o mistério, com a sapiência, com a escuridão, com a sombra e
finalmente com a luz!..
Autora:
Valéria Áureo
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