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sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Quem é ela?



Ilustração: Internet
              
           Ele olhava para ela com certo estranhamento; naquele dia acordou e vislumbrou um rosto diferente ao seu lado, na cama arrumada e muito branca. Lençóis muito alvos e esticados. Onde estavam os lençóis de estampas florais azuis? Lembrava-se de ter se deitado neles e sentido o perfume da fronha recém lavada. Era macia e aconchegante a sua cama; essa ele não sabia dizer se o agradava. Parecia mais dura e as costas se ressentiam... A mulher ele não reconhecia. Era feia, esquisita, de cara sisuda. Quem é ela, meu Deus? Como podia ser? Sempre se orgulhava de sua mulher tão bonita... Não! Não era a sua mulher, concluía. Os olhos? Os olhos não eram verdes? Agora se dava conta de um esmaecido cinza, quase opaco e triste, contornado por duas amêndoas miúdas e confusas. Que olhos tristes, pensou!... No entanto há muito tinha sido engolido, tragado por duas ondas gigantes de mar de esmeralda, que o afundaram no abismo daquela alma feminina, tão linda, tão delicada, quase infantil...

            Hoje acordava e via diante de si uma mulher tão gorda, tão diferente, de pele azeda e desbotada, de pelos grossos espalhados aqui e ali no rosto exageradamente redondo. Peitos abundantes, quadril largo, mãos miúdas e gorduchas... Quando, quando aquela menina tinha partido? E como é que ele não tinha visto aquela mulher gorda, desleixada e triste passar pela porta do quarto? Quem abrira a porta do seu quarto para ela?

            Pensou em gritar, chamar por Flávia, adocicar o dia em seus lábios matutinos, levemente rosados e carnudos, como sempre fazia ao amanhecer. Pensou na pele branca, macia, perfumada e angelical. Tentou fechar os olhos, afugentar da sua vista aquela mulher desconhecida, que insistia em ajeitar os lençóis. Ela o arrastou para a cadeira, pois precisava trocar os lençóis. Não gostou do toque e da intimidade daquela mulher estranha, respirando tão perto do seu rosto e sussurrando-lhe palavras incompreensíveis, guiando-o pelo quarto desconhecido. Quis chamar Flávia, mas a voz não saía... Tentou gritar, mas o grito morria dentro do crânio. Apenas um som seco que não saía de dentro do poço vazio, ele conseguia ouvir. A confusão fazia doer a cabeça. Os braços e as pernas não atendiam suas ordens e  era guiado pela estranha criatura que o sustentava com as mãos fortes. Tentava explorar a contradição dos seus sentidos, fazer-se claro, ao menos para si, e descobrir, ao final, quem era aquela mulher... Experimentou uma apaixonante conexão com a ilusão, na tentativa de encontrar Flávia, atrás da cortina da sala, ao lado do piano, escondida no cômodo vizinho. Gostava de se esconder atrás dele, em uma jovial perseguição de namorados, para depois ganhar um beijo. Ela dava gritinhos, fingindo-se apavorada. Ele fingia ser um leão rugindo e a alcançava depois de alguns minutos. Invariavelmente ela se escondia no mesmo lugar, agachada atrás do piano.

            Que desespero, tê-la perdido de vista. Será que se mudara para outra cidade; fora morar longe? Quem sabe um acidente? Morrera num desastre de avião? Não podia ser... Não se lembrava de ter viajado e sofrido tamanha dor. Casara-se, tivera filhos? Ah! Sempre soube que teria filhos, que ela seria boa mãe... Mas, os olhos? Onde estavam? Onde estava Flávia de olhos verdes, infinitamente verdes e florestais? Tão verdes que as folhas de samambaias se alastravam do lado deles... Ora verdes de mar, ora cor de pedra. Mas... Onde estava Flavia e as verdes folhagens de seu olhar? Quem é esta mulher que mexe em minha cama com tanta intimidade? Como vim parar aqui nesse lugar esquisito? Essa cama, a cadeira, a janela...

            _ Dona Flávia? Dona Fafá?... Pode ficar tranquila, disse o médico entrando pela porta do quarto. Seu Osório vai ficar bem... A senhora vai precisar de muita paciência. E trate de colocar uma acompanhante, dia e noite. Ele não tem mais condições de ficar sozinho em casa. Não tem mais como cuidar de si. Mas posso lhe afirmar, com toda certeza: pelos exames que eu tenho aqui, ele renasceu e terá uma nova chance!

Autora: Valéria Áureo - in Sortilégio dos Signos