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segunda-feira, 24 de junho de 2019

Bonsais e Orquídeas





Não, ninguém devia tê-lo deixado responsável pelos bonsais e pelas orquídeas. Isso não seria apropriado jamais, para ele. Nada beatificado, ritualístico e cerimonioso, como cuidar de plantas, fazia nexo em seu mundo de ideias e práticas. As mãos dele sempre foram ágeis para jogar bolas de gude, fazer varetas de pipas e arapucas de bambu, quando criança.

Cuide bem dos bonsais e das orquídeas! Inapropriado conselho da esposa que desejava ocupá-lo com alguma atividade rotineira em casa, desejando discretamente que ele se acalmasse. O fato é que nunca seria um sujeito sereno.

Ele perdoava a esposa de todas as tolices, inclusive esta, de tentar conduzir bonsais e orquídeas pelo caminho do vigor, sob suas mãos; afinal, ele e a mulher estavam velhos demais para reconsiderar e mudar os planos. Que tolice, a dela! Seu templo era a velocidade e não coadunava com as miniaturas de árvores e com a calma que tanto demandam paciência e zelo. Cuidar de bonsais e orquídeas! Parecia mesmo uma provocação ao seu espírito indômito. Ainda ontem seu corpo viajava na sua frágil Monark duas barras, e o coração acelerado, valente, roncava ao estilo Elvis Presley e sua Harley-Davidson KH. Seu corpo franzino era frenético nas quadras de tênis e nas piscinas. Mas ela não via, ou nem se lembrava de que ele era escravo da ação, da velocidade, do ritmo de foguete enfurecido rumo a Lua. Apesar do compasso vibrante do rock'n'roll, ele estabeleceu limites de convivência pacífica com a esposa e os gatos. Ah! Os gatos, no tempo razoável em que se permitia colocá-los no colo, acariciar seus pelos, enquanto escrevia, eram o templo da serenidade. Mas, o lugar mais seguro para ele estar era na Harley-Davidson original de fábrica, com sua jaqueta James Jean, seu topete com brilhantina. Era original, como originais eram os long-plays na vitrola. E o som o empurrava para fora de casa, para a rua iluminada e frenética. Isso sim era a mocidade! Na rua todos se reuniam para falar de seus pais, dando indícios de que a casa era pequena demais e que deveriam voar para bem longe deles (ou caçar rumo). Sairiam, certamente, sabendo que no futuro, seus filhos repetiriam a arte de rir deles e sair pelo mundo.

Não! Estava comprovado que ninguém devia tê-lo deixado responsável pelos bonsais e pelas orquídeas. Isso não seria apropriado jamais, para ele. Os bonsais e as tristes orquídeas que não contassem com ele. Não é que acabaram sucumbindo na varanda?


Autora: Valéria Áureo
In: Entre Mentes e Corações





sexta-feira, 21 de junho de 2019

Meu amigo, Machadinho


                                                        Fonte de ilustração: Internet

 Eu gosto de catar o mínimo, o escondido... *



   - Então, meu jovem, cá estás. Demoraste hoje. 
O que te impediu que  viesses me ver mais cedo?
         - Vim ter contigo, à sombra da Academia.  Estou ocupado em fazer uma resenha sobre ti, meu amigo. Pena que me limitaram a sessenta linhas... Acho tão pouco; há tanto que falar de ti! Incomoda-me ver-te aí sozinho, vendo o tempo passar. Não te aborreces com a solidão? A mim, dói-me o coração.
         - Eu compreendo... O coração é a região do inesperado. Tudo cansa, até a solidão.  Tédio por dentro e por fora... Mas não estou assim tão só; Carolina me vigia da janela do sobrado. Bem sabes quanto ela é ciumenta. Não te recordas das brigas por causa de Helena? Então, meu amigo, cem anos!... Daqui onde estou vi enfim chegar o século presente, e atrás dele os futuros. Aquele vinha ágil, destro, vibrante, cheio de si, um pouco difuso, audaz, sabedor, mas ao cabo tão miserável como os primeiros, e assim passou e assim passaram os outros com a mesma rapidez e igual monotonia. Daqui deste trono de bronze inferi eu que a vida é o mais engenhoso dos fenômenos, porque só aguça a fome, com o fim de deparar a ocasião de comer, e não inventou os calos, senão porque eles aperfeiçoam a felicidade terrestre. Toda a sabedoria humana não vale um par de botas curtas. Vi o tempo correr... Nós matamos o tempo, mas ele enterra-nos. A grande vantagem da morte é que, se não deixa boca para sorrir, também não nos deixa olhos para chorar. Mas, escrever sobre mim? Quer fazer-me elogios? É o que eu disse: Está morto; podemos elogiá-lo á vontade. Eu não sou homem que recuse elogios. Amo-os; eles fazem bem à alma e até ao corpo. As melhores digestões de minha vida são as dos jantares em que sou brindado. Mas, meu caro, há coisas que melhor se dizem calando...
         - Calar, como? Preciso escrever sobre ti; enaltecer-te no centenário de tua morte. Deliberação de teus confrades; deves saber, no último chá. Tu és tão admirável! ... Preciso dizer que tu vives; preciso dizer que permaneces inquebrantável no tempo, um século depois... Não sei bem por onde começar...
        - Ora, o tempo... O tempo, que a tradição mitológica nos pinta com alvas barbas, é, pelo contrário, um eterno rapagão; só parece velho àqueles que já o estão; em si mesmo traz a perpétua e versátil juventude. Comece pelo começo... Vejamos: o primeiro remédio é fugir a um prólogo explícito e longo. O melhor prólogo é o que contém menos coisas, ou o que as diz de um jeito obscuro e truncado. Lembra-te de minhas Advertências? E mais: Palavra puxa palavra, uma idéia traz outra, e assim se faz um livro, um governo, ou uma revolução, alguns dizem mesmo que assim é que a natureza compôs as suas espécies. Não te esqueças: sentenças latinas, ditos históricos, versos célebres, brocardos jurídicos, máximas, é de bom aviso trazê-los contigo para os discursos de sobremesa.... Quanto a eu estar ainda vivo... Sei; ao menos nos livros e memórias dos amigos. Não importa ao tempo o minuto que passa, mas o minuto que vem.
        - O que poderei falar de ti em tão poucas linhas? Conto da Academia? Falo do retrato social em tua obra? Digo da ironia? Das metáforas incomparáveis? Não quero fazer uma biografia. Quero dizer do teu estilo, do valor de teus romances, teus contos, tuas crônicas... Sempre os indico aos alunos.
        - Dize que inaugurei o realismo nas letras brasileiras! Dize que me tornei um arguto observador e analista psicológico dos personagens! Dize que fiz várias digressões e narrativas de maneira irreverente e irônica e me fiz passar por um "defunto autor" (e não um "autor defunto", como podem pensar)!. Ele, que por estar morto, se exime de qualquer compromisso com a sociedade, estando livre para criticá-la e revelar as hipocrisias e vaidades das pessoas com quem conviveu. Dize que interrompi a narrativa, o tempo; que dialoguei com o leitor e que sugeri estar escrevendo algum capítulo e até mesmo propus ao leitor a supressão de algum outro! O tempo foi uma brincadeira... Uma ilusão! Como é agora. Não estamos cá nós dois a conversar? Pois fui ao passado, conheci dos segredos após a morte, sem revelar ao leitor tais mistérios; um narrador irônico acerca das paixões humanas. Dize, sobretudo, que vivi e que amei Carolina, a luz dos meus olhos!...

        - Não sei se tu mereces um escritor tão sem prestígio quanto eu.... Queria ser um cronista, de imaginação inesgotável para declarar ao mundo a tua importãncia. Mereces um autor de espírito!....
         - Se queres compor o livro, aqui tens a pena, aqui tens papel, aqui tens um admirador... Meu amigo,  a imaginação e o espírito têm limites; a não ser a famosa botelha dos saltimbancos e a credulidade dos homens, nada conheço inesgotável debaixo do sol. Anima-te, escreve como sabes! Não deixes de arriscar. A vida é uma enorme loteria; os prêmios são poucos...

         -Mas, escrever em tão poucas linhas? Sou um sujeito prolixo. Poderia dizer muito de ti. Levaria meses escrevendo... Há particularidades que não encontro em outro autor... Mas o pouco tempo e o espaço me intimidam a imaginação... Temo me perder, extrapolar o limite das sessenta linhas...

        - Prazos largos são fáceis de subescrever. A imaginação nos faz infinitos. A vida é cheia de obrigações que a gente cumpre por mais vontade  que tenha de as infringir deslavadamente. Limita-te, portanto! Respeita as exigências!.Dize simplesmente: trata-se de um escritor carioca, brasileiro, mulato, o pai do realismo ( "Não tive filhos... Deixo livros, ao menos...)! Conta de Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Dom Casmurro, de Quincas Borba, de Helena, dos contos, como Papéis Avulsos. Dize do conto O Alienista, no qual discuto a loucura! Loucura é um tema instigante. Conta das poesias e que fui um ativo crítico literário, um dos criadores da crônica no país!. Conta que fui o fundador da Academia Brasileira de Letras com outros notáveis! Escreve, amigo!... Escrever é uma questão de colocar acentos. Vamos!... Inspira-te logo  e mãos à obra!...
         - Ora, tu e tuas Advertências... Elas servem para que fiquemos avisados, assim não se espera ser censurado, admoestado e nem se tem que se acautelar contra livros e contos de um escritor tão famoso que escreve tão bem, todo o mundo respeita, e até já morreu. É difícil falar de ti, estando na tua presença.
        - Eu, já não importa mais quem eu fui. Elogia minha obra e dou-me por satisfeito; Fiz o que pude.. A obra em si mesma é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar, pago-te com um piparote, e adeus. Não te esqueças, meu caro rapaz, a respeito de tua resenha: Ao vencedor, as batatas. E termina logo esta narrativa que já estás a estourar os limites!...Não te alongues tanto; assim não te consideram o trabalho, nem te publicam.

Valéria Áureo 
Rio de Janeiro
Março de 2008


*A autora se valeu de vários recursos para tornar crível um diálogo entre ela e Machado de Assis. Utilizou o vocabulário elegante da época e, como característica mais significativa, optou pela IRONIA, traço marcante na criação machadiana. As frases em negrito são autênticas, recolhidas da extensa obra de Machado de Assis, dando veracidade ao “colóquio”. 

Dance Comigo, Meu Bem!


                                                  Ilustração: Internet


          

Uma máquina barulhenta recortava ladrilhos no apartamento luxuoso ao lado ( agora uma espelunca esfumaçada  de escombros, resultado de um recente incêndio). Se ao lado era a feiura de fuligem e restos de móveis contorcidos, mais ao alto estavam as nuvens, na concepção do novo morador. Eu, o novo morador, um rapaz irrequieto e cheio de imaginação. Eu acreditava que acima de minha cabeça, seria o paraíso. Enquanto eu escrevia, ouvia tudo o que acontecia no andar de cima. Ouvia a dança que se arrastava no salto alto ( devia ser vermelho), ouvia os passos ritmados sobre a ardósia fria e brilhante; ouvia a respiração, sentia o suor ( que devia escorrer pelo decote e o perfume)... Ela devia se chamar Elisa, leve como o vento... E me imaginava dançando com ela ( que devia ser linda, jovem, delicada). Os passos sussurravam delicadamente em meus ouvidos atentos. Ela, que saberia o que fazer, se quisesse me conquistar para sempre. Ah! Se ela quisesse, ela desceria pela escada, até o quinto andar, exalando o perfume da pele bronzeada, aquecida pela dança... Tocaria a campainha de meu apartamento, e me chamaria para dançar; amarraria uma fita amarela no corrimão, deixaria como sinal, o lenço caído no primeiro degrau do quinto andar, ou no corredor...   

          Então me foi dada a permissão de escrever mais palavras, mas o que eu tinha a dizer nada acrescentaria ao que eu tinha dito ou imaginado. Foi um equívoco, um triste desperdício do idioma, no rol escolhido de palavras sensuais, para uma conquista: a música do andar de cima silenciou; alguém bateu a porta de casa com força, passou a chave e saiu, descendo ritmadamente pela escada; a luz do corredor do quinto andar acendeu. Passos se detiveram diante da minha porta. Prendi a respiração. Três batidas e eu abri, com o coração galopante e atrevido. Pensei que ia morrer. Uma senhora se apresentou como Dona Dadá, uma competente professora de dança. Arfante, de seios enormes e boca vermelha, falou: meu par não veio hoje! Dance comigo, meu bem?

Autora: Valéria Áureo
In: Entre Mentes e Corações

domingo, 16 de junho de 2019

O silêncio em casa


                                                    Ilustração Fonte: Internet

                 Ah! Alguém para dizer: que bom que você chegou! ... Mas a casa é vazia. As palavras já não mais bastariam e era preferível mesmo a fidelidade do silêncio (e havia um lugar reservado para ele, onde o tempo não conta mais). Havia um paraíso extraordinário que eu não queria perder, onde o tempo, esse ditador, não conta, e os sonhos não respeitam o momento. Ah! Esse algoz implacável.

               Trinta anos passados, (o meu nome e o nome dele escritos a canivete no tronco da árvore) e o tempo permitia o caleidoscópio dos nossos sonhos. Dois nomes talhados e a valentia de dois jovens impetuosos, que não temiam nem mesmo a morte (essa vilã que nos deixa tão zangados). Mas éramos tão diferentes, para ficarmos juntos por toda a vida. E a morte nos deixa tão zangados, porque somos levados misteriosamente, para lugares tão desconhecidos, e sozinhos. (Eu achei que deveria ser forte). E eu acendia o cigarro para afirmar a minha vida, mostrando-me uma pessoa incrível, segura e independente. E as minhas tolas convicções se dispersavam na fumaça da primeira tragada.

                 O silêncio em casa (achei que devia ser forte) era apropriado para comer jujubas azuis e descartar todas as outras cores. Era assim que fazíamos aos treze anos. Éramos tão diferentes para ficarmos juntos! O silêncio em casa me faz companhia (quando é mórbido pensar que não mais terei tempo para escrever todas as histórias que eu queria). Há alguns anos, reservei um lugar para os sonhos, mas eles não respeitam o tempo, nem os acontecimentos.

                O meu papel nesse drama? Trazer aventuras e histórias para sua vida.


Autora: valéria Áureo
In: Entre mentes e Corações

terça-feira, 11 de junho de 2019

Coisas de Santo Antônio


                                                                Ilustração: Internet


Junho. Quantos dias santos haveria de suportar nessa vida? A tradição em família de reverenciar Santo Antônio, em especial, era antiga. Uma fita amarela, um papelzinho com o nome de alguém, copo de água e mel, um pãozinho da prosperidade, uma medalha, uma imagem de cabeça para baixo, afogada em um copo de água. Um copo de lágrimas da mãe, que temia pela solteirice da filha.
Criança ainda, Lívia ia frequentemente à Igreja, sem muito entender aquela injustificada e precoce aflição de sua mãe espalhafatosa e crente. E acabou tomando birra do santo, porque a mãe não falava em outra coisa. Santo Antônio haverá de lhe dar um bom marido. A menina sem compreender as necessidades da mãe, já se cansava do bendito santo Antônio. Dentro da Igreja, a menina andava sempre a olhar para os lados, porque não estava interessada por coisa alguma objetivamente. Achava que os santos da igreja ficavam à mostra dentro dos nichos da parede, sem muito o que fazer. Costumava fechar e abrir rapidamente os olhos diante de cada imagem, como se esperasse alguma reação do santo; algum gesto disfarçado em segundos de uma piscadela. Era natural que os provocasse, porque Lívia, aos oito anos, só queria brincar. Lívia fazia caretas, acenava, dava sustos, gritava, colocava a língua de fora, ria diante do santo, que permanecia impassível.
- Filha, não vai ver Santo Antônio hoje?
- Pois ele que espere sentado, respondia Lívia, já moça e descrente do poder do santo. Ele que espere bem sentadinho, para não se cansar, reafirmava a cada convite da mãe. E assim foram os anos. A cada lembrança do dia dele, Lívia ia à imagem do santo afogado e o puxava por uma cordinha amarrada ao pescoço da imagem, dentro d’água, de cabeça para baixo. Não vai se lembrar de mim, não é? Não vai se lembrar mesmo, não é? E pescava a imagem do fundo da jarra e tornava a soltar a cordinha, para ele afundar.
Assim foram os anos de sua juventude: Tereza se casou, Andrea, Julia, Silvia, Juliana, Isaura, Lucia... Todas elas, as suas amigas! Lívia, cheia de birra e de mal com o Santo Antônio, nunca quis conversa.
                 Em um dia treze de junho, recente, Lívia abriu os olhos para mais um dia em homenagem ao santo casamenteiro. O que viu? Nada que se pudesse dizer que foi obra do santo casamenteiro. Ela, agora adulta, estava sem a mãe do lado, a fazer promessas para Santo Antônio, para livrá-la da solidão. A mãe enterrou sonhos, junto com a dor que nunca mencionava, de vê-la solteirona, vencida pelo costume de ir em todas igrejas de Santo Antônio e pedir pela filha. A mãe levou o hábito de pedir preces ao santo a todos os parentes consigo.
           Lívia ficou. A sua vida tinha se resumido assim: diante de si, a mesma cama vazia, o mesmo banho corrido, o mesmo café da manhã - amargo, frio, sem açúcar e sem ninguém. A mesma lágrima discreta teimando em estragar sua maquiagem e arruinar sua máscara de felicidade. Mais um dia treze de junho... O mesmo dia de trabalho e festejos ao casamenteiro. O mesmo retorno ao lar frio, pensou.
                   Pela primeira vez Lívia fitou com ternura a imagem de Santo Antônio; afinal era quem a recebia todos os dias, assim que entrava em casa. De maneira especial, sem festejos, orações ou palavras, ele se tornou o companheiro de sempre, disposto sobre a estante da sala, a lhe oferecer sua presença palpável, mesmo que em gesso. Lívia, finalmente, redimindo-se, trouxe-lhe flores. E o santo pareceu estar de braços estendidos para lhe dar um abraço, ao lado de uma xícara de café bem quente. Lívia piscou, apertou os olhos assustados, e viu Santo Antônio sorrindo, pela primeira vez. Ela o abraçou e pediu perdão. Decidiu finalmente acreditar nos poderes dele e confiar.
Lívia, o noivo Antônio Esperança, e o pai escolheram as flores do jardim de casa e visitaram juntos a Igreja do santo de predileção da mãe. Ali deixaram em oferecimento e gratidão, o buquê do casamento da filha.


Autora: Valéria Áureo
In: Entre Mentes e Corações






                                                    

quinta-feira, 6 de junho de 2019

Incansável Dona Fitônia.

Ilustração: Fonte Internet
Assim que conheci Dona Fitônia, senti que ela era dessas mulheres de concentrar tudo, resumir-se em tudo e preencher todos os espaços com as suas gostosuras; bastar e abastecer todo mundo com alegria e conversas. Tal qual a folhagem do mesmo nome, Fitônia se esparramava em generosidade. Não gostava de delegar a outros o que sabia dar conta e irradiava calor e luz como o Sol. Mas, as contas eram cada vez maiores e ela passou a almejar o descanso. Extratos e papéis recheando a bolsa gorducha lhe faziam companhia. Rotunda de formas e de dores. Bem que poderia lhe caber o nome Dolores, em todos os extremos do seu corpo atarracado e já ficando esgotado, sem que ela entregasse os pontos. O colar de pérolas adornava o pescoço curto e dava elegância ao colo maternal. Fazia sorrir com os seus gestos apressados e eficazes, sempre carregados de soluções. Fitônia estava sempre disponível, sempre alegre, sempre presente, sempre... Eu não ousaria dizer mais nada.
- Lá de cima ela vai continuar cuidando de todos nós, sussurrariam os parentes e amigos, quando a sua hora chegasse. A fala poderia ser de alguém querendo confortar a si e aos demais, mas me pareceria o vaticínio de que tudo não acabaria ali. Como assim, continuar cuidando de nós? Isso me parecia uma convocação desumana para a eternidade e me inquietei com a incerteza do alardeado descanso eterno. Quando é que Fitônia iria parar?

Fitônia tinha tudo concentrado em si, como um vigoroso estrato, uma camada de nuvens baixas e acinzentadas modificando a cor do céu. Fitônia, a pessoa generosa que cuidava e amava desmesuradamente. Fitônia lembrava de cada data especial, de cada aniversário, e providenciava uma comemoração modesta. Fitônia recebia em casa, da melhor forma possível, quem chegasse. Ninguém saía sem um cafezinho coado na hora. Fitônia puxava conversa e tinha assunto para todos. Cumprimentava pessoas no elevador e na reunião de condomínio. Fitônia fazia a feira, o mercado, a farmácia, a costura e remendos.... Fitônia cozinhava e ajudava a faxineira com o estilo perfeccionista. Corrigia os males feitos e os defeitos. Rezava para todos, pedia perdão, não se sabia o porquê. Fitônia providenciava, remediava, abastecia e deixava tudo impecável. Fitônia controlava as despesas e administrava as contas e os problemas. Era ela que pagava, cobrava, aplicava e fazia render. Era ela que fazia ou providenciava os consertos na casa. Era ela que organizava os papéis e declarava o imposto de renda; Fitônia controlava o relógio para o leitor da companhia de água e eletricidade e comprava o botijão de gás. Ela ia a velórios, enterros e missas de sétimo dia e d mês. Consolava, chorava e se apiedava. Só havia um porém: nunca seriam pra si mesma todos os cuidados e festejos feitos aos outros. Nunca seria o bastante, por mais que fizesse, porque ela não descansava e não havia quem cuidasse dela.
Agora, ensaiando o último sono, fingindo que dormia para sempre, podia ouvir os egoístas (ela vai continuar cuidando de nós) tirando-lhe o único mérito que almejava. Esperava o reconhecimento da sua vida, que seria o precioso e definitivo - Descanse em Paz!

Autora Valéria Áureo
In: Entre Mentes e Corações