ILUSTRAÇÃO: INTERNET
Interessante como
as ideias podem nos levar a viagens distantes. Lembrei-me das aulas de literatura
portuguesa, tão primorosas e inesquecíveis no antigo Regina Coeli, sob a maestria
de madre Adeodata.
Estou a um passo dos
menestréis medievais, em busca de inspiração. O trovadorismo foi a primeira
manifestação literária da língua portuguesa, no século XII, com a Cantiga da
Ribeirinha, ou Cantiga da Garvaia, em plena Idade Média, período em que
Portugal estava no processo de formação nacional. Na lírica medieval, os
trovadores eram de origem nobre, que compunham e cantavam, com o acompanhamento
de instrumentos musicais, as cantigas (poesias cantadas). Eram poesias satíricas
(Cantigas de Maldizer e Cantigas de Escárnio) e líricas (Cantigas de Amor e
Cantigas de Amigo).
Bom, vou levar adiante a minha narrativa, do
contrário essa história vai se transformar em uma aula de literatura, e nem
todos gostam; voltemos ao fato. O que mais importa nesse momento é o ocorrido.
Sempre fomos encantados por música na casa 87
da Rua Domingos Inácio; ou nós mesmos nos embalávamos e cantávamos até dormir,
ou o som vinha do Clube dos Trinta, em noites de bailes. Sempre havia um fundo musical nas nossas
noites. A música do Clube dos trinta ecoava atravessando o Bequinho da Zulmira,
o quintal de Dona Lulu e as paredes da nossa casa, até nos fazer dormir. Nesse
afã de cantar, dançar, pular de alegria, íamos crescendo, sem nos dar conta de
que tudo passaria tão depressa. De uma hora para outra a casa tinha mocinhas e
rapazes, andando aqui e ali. Minha narrativa não tem nada a ver comigo, porque eu ainda me perdia entre livros e bonecas e não era o objeto de nenhum afeto ou amor escondido. Tão escondido que nem mesmo as moças da casa sabiam. Mas me lembro do fato em uma noite qualquer do final dos anos 60.
Noite alta, já beirando a madrugada, ouve-se um violão e a voz melodiosa, de um cantor fazendo serenata em nossa porta. Era agradável e surpreendente uma melodia tão próxima. Era a primeira vez que ouvíamos uma serenata. Música lá fora... Em contrapartida havia risos e alegria do lado de dentro da casa.
Apesar de todos nós gostarmos da cantoria, nenhuma Julieta teria chances de se chegar à janela (o balcão de Shakespeare) para ver quem seria o valente Romeu. Não com o nosso pai já de pé e atento, movendo-se de um lado para outro, sem acender as luzes, para resolver a situação. A música e o cantor eram acompanhados por um coro de rapazes, amigos com certeza do jovem menestrel apaixonado, naquele desafio considerável de fazer ousada corte a uma das moças da casa 87.
Segue a música atravessando a noite fria do final da década de 60. Silêncio dentro de casa e melodia do lado de fora. Tudo ia bem até que...
Um tiro para o ar. Dois tiros, três... Uma voz imitando o uivo de um lobo! Auuuu!... A música aveludada do menestrel dá lugar a uma correria desesperada, uma gritaria desafinada e outros barulhos: corre, corre, corre!Pega o banquinho!...
No outro dia, jogados à porta da casa 87, havia um banquinho e o violão. Quanto ao seresteiro ousado, nunca se soube de quem se tratava. Uma pena, não é?
Um cantinho, um violão /Esse amor, uma canção /Prá fazer feliz
A quem se ama... /Muita calma prá pensar /E ter tempo prá sonhar...
Autora: Valéria Áureo
To: Patrícia Áureo Cerqueira de Souza