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sexta-feira, 1 de novembro de 2019

Coisa de Afeição ou Amor à Primeira Vista


Era apenas um menino da fazenda vizinha, visto aqui e ali, numa aprumação franzina, escanelado por falta de apreço aos doces e resistência à comida. Falta de apetite e aspiração. Perna fina. Porte de menino que ia crescendo desjeitado no prumo de duas vigas inclinadas para frente feito bambu, arqueado de peso e responsabilidade. Foi sempre miúdo no crescimento; assim mesmo era sujeito bom de tarefas. Difícil explicar a força que saía daqueles dois braços quebradiços de gravetos. É que já se tinha por chefe da casa desde que o pai se embrenhou mundo afora, deixando a mãe e a roça pra Deus cuidar. Dizem que foi coisa de amor desconsiderado por uma mulher casada e que disso só recolheu estrago pra vida. Deixou pra trás a casa e os filhos sem qualquer consideração ou piedade. Declarava que o amor havia corrompido os sentimentos pela família e precisou seguir seu destino. O menino, até então, não podia compreender tal sentimento. Sobrou ódio pelo pai. De tão pequeno, de tão sem pai, virou Zé Dadaia; Zé, filho da Dária, embora também fosse filho do Dirceu. Decidiu pela orfandade paterna, de tanto rancor que guardou.
          De repente o moleque miúdo deu uns volteios, uns rodopios no tamanho das pernas, os braços estirando a pele e os ossos num arrebatamento só. O pescoço encompridando para cima, o queixo alargando e arrastando os dentes; e do nada se deu arrancado no crescimento. Ficou moço de traços esguios. Já rapaz foi se empregar na fazenda do Seu Teixeira, por consideração ao padrinho e afeição à menina que, de soslaio acompanhava crescer como flor de manacá. Deu de sonhar acordado, acometido de mal que afeta os desavisados... O amor o perturbou tanto que de dia se perdia em devaneios e à noite não dormia. Ficou cativo das nuvens e tormentos que pontilhavam a alma que não era dela; não sendo dela, doía tanto que de mais ninguém seria. A alma ora ficava, ora fugia, meio sofrer, meio esperar. Mais que o amor, a alma morria... Iniciado rapaz já se perdia em dançar com a moça de cintura fina; ao menos em sonhos, quando se estirava no capinzal seco. Deu também de contar as estrelas, hábito que tinha com a rês no pasto. Uma, duas, dez... Cem, mil... Com as estrelas se perdia em número e ordenamento no céu, tentando alinhar os distantes pontos emaranhados no infinito, como se fosse o rebanho. Ora para a esquerda, ora para a direita, os olhos não tinham destino certo, nem sabia ele a que distância a vista teria que ir... Dos números fugia para as palavras, os cheiros, o vento. Quem procura estrelas sempre está perto do céu; mas não era ali que a moça vivia. O rapaz, no baile da festa de Reis, tencionava tomar tento pra vigilância daquela formosura, como se houvesse destinação de ela ser sua e de mais ninguém... Na imaginação deu-se por avexado diante do vestido rosa dela, graça cheia de fitas nos cabelos. Ele tão simples; ela, capricho e cabedal! Viu pelo salão gente embesteirada de manias, muitos empertigados em roupa de qualidade. Ele tímido, reduzido no orgulho e vaidade, sempre de olho nela. Pensava muito pouco de si: muita sela para pouca montaria. Desavisado do destino, não custava nada sonhar...
          Zé Dadaia dormiu no mormaço do dia, no intervalo da refeição e o eito, estirado no capinzal... Na imaginação desenvolveu a dança, respeitoso, aprumando o pescoço para cima dos ombros dela, só para sentir o aroma de flor nos cabelos. Eta devaneio presunçoso, meu Deus! Acordado tinha conta de que era ninguém perto dela e nem em sonho a alcançava...
          De longe, agachado na estrada, um caboclo toma pinga, as pernas leves e a consciência pesada, porque bebe demais, peca em pensamento e espicha os olhos pra moça que anda toda levezinha no chão batido de terra. Outro, agarrado na viola, consola uma lua de parto de madrugada quase perdida e suspira só por conta da solidão. Outro ainda olha para todas que vêm do campo e não se perde em nenhuma. Lá longe, onde antes se ouviu a toada de bois, segue a vida na rotina, na luta no campo, no corte do capim; e mais um dia se encaixou no crepúsculo.
          Agora é noite nascente de poucos sons. Um caboclo acocorado repousa nas pernas dobradas por canseira e desilusão. Canseira, copo e golada de bagaceira. E vai chegando de olhos perdidos nos olhos e pernas de todas elas que voltam para casa. O rosto reflete uma cor cinza fumarenta no luminar do candeeiro e elas arriando as pestanas pra encobrir a vergonha e pra noite alumiar o sonho. A noite encobre a passagem e leva cada um ao seu destino...

          A velha gaita choraminga fazendo a moça dormir. O pai percebe os suspiros e o perigo de se ter donzela em casa com tanto caboclo rondando. Ele envelheceu viúvo, cuidando da brasa na fornalha, fazendo às vezes da mãe; atento com a filha.  Paciente... Cuida para o alimento ir chegando ao sabor do frango com quiabo. Apaga a chama e deixa a brasa para a panela não queimar. Dia sim, outro também manda tirar o cisco da tapera velha, cuida de ajeitar a lenha. Pouco tem que fazer quando a solidão se acomoda junto do coração. O que pode é se embalar com as cantorias do rádio na voz de Nelson Gonçalves e algumas recordações da mocidade. Toda manhã repete a vidinha assim: vê o padrão das vacas novas, decide o que matar e o que vender; o que plantar e o que colher. Dá direção da lida... Opina, atende, responsabiliza, reforça e cobra.
          Na roça o rapagão que conta as estrelas é quem trabalha, enquanto o velho decide. Solta os bezerros no barracão. Cuida dos matos, ajeita a lavoura: roça, capina, cavouca, colhe, seca, bate, recolhe, queima, amontoa. O velho não aguenta mais a tirança de leite. No mais é conversar e pensar na filha que vai ficar sozinha naquelas lonjuras; preocupa porque Deus não lhe deu filho homem. Deus também foi lhe tirando os dias de vida devagarzinho, devagarzinho, um segundo depois do outro... Foi também lhe definhando os músculos como se esvaziasse um latão de leite. Foi lhe retirando os dentes, os cabelos, a alegria... Ficou desenhado em magreza de pele e osso quase, quando Deus lhe tirou a mulher.
          De longe o velho vislumbra o fogo que come todas as matas das cercanias. Queimada consumindo tudo. Conclui que o cabra que faz isso com o mundo não é humano.
          Um dia surge um mancebo engravatado. Chegando mansinho de curioso, conversinha e bigodinho fino ocupando a boca ardilosa. O pai arreliado com aquela chegança de forasteiro não se mostra satisfeito. É que a moça da vizinhança já sentia a dor de menino novo apontando pra nascer e confirmando a desonra. O sujeito autor da desgraceira nem era das redondezas. Pois fugiu a passos largos pra se afastar ligeiro da justiça de garrucha. Coitado do compadre Setembrino! Queria isso não!

          O velho queria isso pra filha não! Melhor abreviar com a situação arriscada de dar tempo ao tempo e deixar moça em casa, encadeirada  e de boniteza crescente. Flor exposta ao enxame, ele pensava.
          Zeloso sabia que honra de donzela carece de constante sentinela. Uma piscadela e a desonra entravam pela porta ou pela janela. Porta, janela, tudo carece de tramela. Ainda mais... A garrucha sempre debaixo do travesseiro era meio de prevenção e cuidado que podia ter. O dado mais relevante é que já se sentia vivido demais pra tanta prevenção, sabendo que não ia durar para sempre. Deu de ficar cansado no peito e pouca respiração. Não aguentava escada e nem latão de leite.
          Tudo passava pela cabeça do velho enquanto livrava a filha dos moços que chegavam de mansinho. Vinham rasteiros que nem cobra peçonhenta.
  
Do seu lado o sujeito de fala mansa, doutor, de própria declaração pensava: - vai ser do jeitinho que estou com vontade! Mas a menina é arisca, meio pra aqui, meio pra ali; parte criança, parte moça. E nem se deixa avistar na varanda. Resguarda no quarto a boniteza da idade. O doutorzinho arredou até a Igreja, assuntando, tirando uma olhada de longe, nas formas, na boca com o desenho do riso dela sob o véu. Tocaiou na hora da missa, sondou aqui e ali e decidiu confiscado de fome e desejo falar com o pai dela. Era bonita demais... Precisão de ser conquistada com muito jeitinho e astúcia.
          Criou coragem e por isto foi derrubar a resistência do velho: - Quero a mão dela, Seu Teixeira... Levo daqui engatada no lombo do cavalo, mas antes trato de casamento. Garanto na papelada o nome, família, abastança. As diferenças “têm”, é verdade, mas faz mal não, que eu cuido de fazer ela feliz!
          O pai já encanecido foi logo desarmado na iniciativa da proposta; de pronto assuntou com o sujeito conversa séria e de muita clareza, duração e honestidade e nem argumentou com a menina para conhecer do seu querer. Ao jovem jeitoso no falatório declarou:- Garrou na minha mão pro aperto é mais valioso que juramento; já que do documento de papel assinado o senhor cuida! Leva a “fia” consigo!... Pra mim oceis tá casado. Cuida da moça, que já tô véio e fatigado; leva com o senhor antes que o caso ganhe grandiosidade!
          Ela se foi, casadinha de novo, sem lamúria ou riso, porque tinha os pés fincados no chão e não tinha querer. Nunca deu de saber a ninguém seus desejos e sentimentos. Acatou com frieza e boca calada a sua destinação de seguir o tal doutor, no lombo do burro. Levou pouca roupa e sonho nenhum. Mesmo porque nunca se deu conta de olhar para o lado, onde pudesse perceber que o rapaz sonhava e sofria. Também nunca olhou para o firmamento e jamais contou estrelas...
          Zé Dadaia, o rapaz que cuidava da roça e sonhava com a moça, deu-se por agastado. Olhos entristecidos de quem ama sem ser amado. Emagreceu, definhou, sofreu e quase morreu. Disso compreendeu o arrebatamento a que o homem está sujeito e perdoou o abandono do pai. Sentiu-se um pouco Zé do Dirceu... Do seu mal nunca teve cura; viveu a vida inteirinha a olhar para o céu a contar estrelas. No chão contava os bois todos os dias. Ê boi... Ê boi. Ê boi na estrada.



          
Autora: Valéria Áureo
In: Conjugando o Amor Líquido




Beijo Na Boca


                                   Ilustração: Internet


         Ivan Ferreira da Silva, mas o povo me conhece por Tico, por causa da minha miudeza de ossos e músculos. Um tico de gente, dizia minha avó. Mas meu nome é Ivan, confirmado pelo Espírito Santo na pia batismal. Cidadão de tez escura, atualmente chamado de afrodescendente pelos intelectuais. Sou negro, neguinho, negão e não me envergonho quando me chamam assim. Acho até bonito quando a moça me chama de meu neguinho, ou de meu negão, porque para mim é elogio. Sou o nego, para os meus amigos. Portelense enquanto fui liberado para aquele arrocho na Escola de Samba; mas depois deu ciúmes na minha neguinha e deixei de frequentar, para não cair em tentação. Carioca, do Rio Comprido, por nascimento e aptidão; nasci com a veia de sambista e bom de bico, pois uma conversa boa eu sempre tive. É que Deus compensa uma coisa com outra: tira a beleza, mas dá a astúcia. Botafoguense, porque a gente tem que amar incondicionalmente alguma coisa nesta vida, custe o que custar. Tem que ter uma paixão! Eu tenho a estrela solitária no meu peito. E eu amo aquela estrela, ali sozinha, da camisa de meu time. Sou do sexo masculino, com muita segurança e definição disso; não tenho meio termo, sou nascido, criado e conservado macho. Para mim não há nada mais acertado no mundo que mulher. Também não recrimino quem não goste. O amor cabe em todo lugar. A pintura da vida perfeita que me impingem no carnaval não me comove nem um pouco. Não vou virar alegoria para turista que vem visitar favela... Já não tenho nem mais os meus dentes e nem me iludo com mais nada nesta vida. Perdi a inocência.
 
          Insensíveis! Eu dou essa conta do estrago em minha boca aos governantes, já que não tive chance de me defender; já nasci em desvantagem no afeto e no leite. Já nasci devendo. Por que eu não sei, mas já vim devendo. Sem pai para me defender, sem mãe para me criar. Uns já nascem sem sorte; é o meu caso. Sem astúcia e resignados, muitos dos meus vizinhos se consolam em novelas; a ironia é que, no intervalo delas há propagandas de comida e de cremes dentais branqueadores. Tenho muito pouco do primeiro e não me serve de nada o segundo. Em resumo, barriga e boca vazias... Ainda me mandam sorrir para a câmera, porque estou sendo filmado, os covardes.
 
          Milhões de olhos mortos diante da TV habitam meu país e não veem o que se passa bem aqui. Sou de pouco estudo, mas observo. Não nasci burro, não. Quanta coisa por fazer e milhares de homens acomodados no sofá da sala e nos gabinetes em Brasília. O livre arbítrio deles está num comando portátil que os controla e no painel de votação secreta. Cultivam uma apatia de consciência tranquila e se consolam com o final feliz. Onde já se viu?... Final feliz!... Quando querem mais emoções, costumam mudar de canal que é igual no passado, no presente, no futuro. Tudo no controle remoto, para não desgastar o corpo.

          Hoje ouvi que para fazer concurso para policial é preciso ter, ao menos, vinte dentes na boca. Ri, ri muito até passar mal... Já viu uma boca sem dentes rindo? Pois não tem graça. Ah! Concurso público para policial. Ah!... Se eu tivesse vinte dentes... Primeiro iria tirar um retrato 3x4 para fazer uma nova identidade:- Tico com vinte dentes, sorrindo... Foto de frente e de perfil. Depois iria comer rapadura, chupar cana, morder um pedaço de carne. Fazia uma extravagância e comprava meio quilo de alcatra. Improvisava um churrasco. E, finalmente, iria beijar minha namorada na boca, que nem isso eu faço. Ah! Se eu tivesse vinte dentes, seu moço!...


Autora: Valéria Áureo
In: Conjugando o Amos Líquido