Era apenas um menino da fazenda vizinha, visto aqui e ali, numa aprumação
franzina, escanelado por falta de apreço aos doces e resistência à comida.
Falta de apetite e aspiração. Perna fina. Porte de menino que ia crescendo
desjeitado no prumo de duas vigas inclinadas para frente feito bambu, arqueado
de peso e responsabilidade. Foi sempre miúdo no crescimento; assim mesmo era
sujeito bom de tarefas. Difícil explicar a força que saía daqueles dois braços
quebradiços de gravetos. É que já se tinha por chefe da casa desde que o pai se
embrenhou mundo afora, deixando a mãe e a roça pra Deus cuidar. Dizem que foi
coisa de amor desconsiderado por uma mulher casada e que disso só recolheu
estrago pra vida. Deixou pra trás a casa e os filhos sem qualquer consideração
ou piedade. Declarava que o amor havia corrompido os sentimentos pela família e
precisou seguir seu destino. O menino, até então, não podia compreender tal
sentimento. Sobrou ódio pelo pai. De tão pequeno, de tão sem pai, virou Zé
Dadaia; Zé, filho da Dária, embora também fosse filho do Dirceu. Decidiu pela
orfandade paterna, de tanto rancor que guardou.
De repente o moleque miúdo deu uns volteios, uns rodopios no tamanho das
pernas, os braços estirando a pele e os ossos num arrebatamento só. O pescoço
encompridando para cima, o queixo alargando e arrastando os dentes; e do nada
se deu arrancado no crescimento. Ficou moço de traços esguios. Já rapaz foi se
empregar na fazenda do Seu Teixeira, por consideração ao padrinho e afeição à menina
que, de soslaio acompanhava crescer como flor de manacá. Deu de sonhar
acordado, acometido de mal que afeta os desavisados... O amor o perturbou tanto
que de dia se perdia em devaneios e à noite não dormia. Ficou cativo das nuvens
e tormentos que pontilhavam a alma que não era dela; não sendo dela, doía tanto
que de mais ninguém seria. A alma ora ficava, ora fugia, meio sofrer, meio
esperar. Mais que o amor, a alma morria... Iniciado rapaz já se perdia em
dançar com a moça de cintura fina; ao menos em sonhos, quando se estirava no
capinzal seco. Deu também de contar as estrelas, hábito que tinha com a rês no
pasto. Uma, duas, dez... Cem, mil... Com as estrelas se perdia em número e
ordenamento no céu, tentando alinhar os distantes pontos emaranhados no infinito,
como se fosse o rebanho. Ora para a esquerda, ora para a direita, os olhos não
tinham destino certo, nem sabia ele a que distância a vista teria que ir... Dos
números fugia para as palavras, os cheiros, o vento. Quem procura estrelas
sempre está perto do céu; mas não era ali que a moça vivia. O rapaz, no baile
da festa de Reis, tencionava tomar tento pra vigilância daquela formosura, como
se houvesse destinação de ela ser sua e de mais ninguém... Na imaginação deu-se
por avexado diante do vestido rosa dela, graça cheia de fitas nos cabelos. Ele
tão simples; ela, capricho e cabedal! Viu pelo salão gente embesteirada de
manias, muitos empertigados em roupa de qualidade. Ele tímido, reduzido no
orgulho e vaidade, sempre de olho nela. Pensava muito pouco de si: muita sela
para pouca montaria. Desavisado do destino, não custava nada sonhar...
Zé Dadaia dormiu no mormaço do dia, no intervalo da refeição e o eito,
estirado no capinzal... Na imaginação desenvolveu a dança, respeitoso,
aprumando o pescoço para cima dos ombros dela, só para sentir o aroma de flor
nos cabelos. Eta devaneio presunçoso, meu Deus! Acordado tinha conta de que era
ninguém perto dela e nem em sonho a alcançava...
De longe, agachado na estrada, um caboclo toma pinga, as pernas leves e a
consciência pesada, porque bebe demais, peca em pensamento e espicha os olhos
pra moça que anda toda levezinha no chão batido de terra. Outro, agarrado na
viola, consola uma lua de parto de madrugada quase perdida e suspira só por conta
da solidão. Outro ainda olha para todas que vêm do campo e não se perde em
nenhuma. Lá longe, onde antes se ouviu a toada de bois, segue a vida na rotina,
na luta no campo, no corte do capim; e mais um dia se encaixou no crepúsculo.
Agora é noite nascente de poucos sons. Um caboclo acocorado repousa nas
pernas dobradas por canseira e desilusão. Canseira, copo e golada de bagaceira.
E vai chegando de olhos perdidos nos olhos e pernas de todas elas que voltam
para casa. O rosto reflete uma cor cinza fumarenta no luminar do candeeiro e
elas arriando as pestanas pra encobrir a vergonha e pra noite alumiar o sonho.
A noite encobre a passagem e leva cada um ao seu destino...
A velha gaita choraminga
fazendo a moça dormir. O pai percebe os suspiros e o perigo de se ter donzela
em casa com tanto caboclo rondando. Ele envelheceu viúvo, cuidando da brasa na
fornalha, fazendo às vezes da mãe; atento com a filha. Paciente... Cuida
para o alimento ir chegando ao sabor do frango com quiabo. Apaga a chama e
deixa a brasa para a panela não queimar. Dia sim, outro também manda tirar o
cisco da tapera velha, cuida de ajeitar a lenha. Pouco tem que fazer quando a
solidão se acomoda junto do coração. O que pode é se embalar com as cantorias
do rádio na voz de Nelson Gonçalves e algumas recordações da mocidade. Toda
manhã repete a vidinha assim: vê o padrão das vacas novas, decide o que matar e
o que vender; o que plantar e o que colher. Dá direção da lida... Opina,
atende, responsabiliza, reforça e cobra.
Na roça o rapagão que conta as estrelas é quem trabalha, enquanto o velho
decide. Solta os bezerros no barracão. Cuida dos matos, ajeita a lavoura: roça,
capina, cavouca, colhe, seca, bate, recolhe, queima, amontoa. O velho não
aguenta mais a tirança de leite. No mais é conversar e pensar na filha que vai
ficar sozinha naquelas lonjuras; preocupa porque Deus não lhe deu filho homem.
Deus também foi lhe tirando os dias de vida devagarzinho, devagarzinho, um
segundo depois do outro... Foi também lhe definhando os músculos como se
esvaziasse um latão de leite. Foi lhe retirando os dentes, os cabelos, a
alegria... Ficou desenhado em magreza de pele e osso quase, quando Deus lhe
tirou a mulher.
De longe o velho vislumbra o fogo que come todas as matas das cercanias.
Queimada consumindo tudo. Conclui que o cabra que faz isso com o mundo não é
humano.
Um dia surge um mancebo engravatado. Chegando mansinho de curioso,
conversinha e bigodinho fino ocupando a boca ardilosa. O pai arreliado com
aquela chegança de forasteiro não se mostra satisfeito. É que a moça da
vizinhança já sentia a dor de menino novo apontando pra nascer e confirmando a
desonra. O sujeito autor da desgraceira nem era das redondezas. Pois fugiu a
passos largos pra se afastar ligeiro da justiça de garrucha. Coitado do
compadre Setembrino! Queria isso não!
O velho queria isso pra
filha não! Melhor abreviar com a situação arriscada de dar tempo ao tempo e
deixar moça em casa, encadeirada e de boniteza crescente. Flor exposta ao
enxame, ele pensava.
Zeloso sabia que honra de donzela carece de constante sentinela. Uma
piscadela e a desonra entravam pela porta ou pela janela. Porta, janela, tudo
carece de tramela. Ainda mais... A garrucha sempre debaixo do travesseiro era
meio de prevenção e cuidado que podia ter. O dado mais relevante é que já se
sentia vivido demais pra tanta prevenção, sabendo que não ia durar para sempre.
Deu de ficar cansado no peito e pouca respiração. Não aguentava escada e nem latão
de leite.
Tudo passava pela cabeça
do velho enquanto livrava a filha dos moços que chegavam de mansinho. Vinham
rasteiros que nem cobra peçonhenta.
Do seu lado o sujeito de fala mansa, doutor, de própria declaração pensava: - vai ser do jeitinho que estou com vontade! Mas a menina é arisca, meio pra aqui, meio pra ali; parte criança, parte moça. E nem se deixa avistar na varanda. Resguarda no quarto a boniteza da idade. O doutorzinho arredou até a Igreja, assuntando, tirando uma olhada de longe, nas formas, na boca com o desenho do riso dela sob o véu. Tocaiou na hora da missa, sondou aqui e ali e decidiu confiscado de fome e desejo falar com o pai dela. Era bonita demais... Precisão de ser conquistada com muito jeitinho e astúcia.
Criou coragem e por isto foi derrubar a resistência do velho: - Quero a
mão dela, Seu Teixeira... Levo daqui engatada no lombo do cavalo, mas antes
trato de casamento. Garanto na papelada o nome, família, abastança. As
diferenças “têm”, é verdade, mas faz mal não, que eu cuido de fazer ela feliz!
O pai já encanecido foi logo desarmado na iniciativa da proposta; de
pronto assuntou com o sujeito conversa séria e de muita clareza, duração e
honestidade e nem argumentou com a menina para conhecer do seu querer. Ao jovem
jeitoso no falatório declarou:- Garrou na minha mão pro aperto é mais valioso
que juramento; já que do documento de papel assinado o senhor cuida! Leva a
“fia” consigo!... Pra mim oceis tá casado. Cuida da moça, que já tô véio e
fatigado; leva com o senhor antes que o caso ganhe grandiosidade!
Ela se foi, casadinha de novo, sem lamúria ou riso, porque tinha os pés
fincados no chão e não tinha querer. Nunca deu de saber a ninguém seus desejos
e sentimentos. Acatou com frieza e boca calada a sua destinação de seguir o tal
doutor, no lombo do burro. Levou pouca roupa e sonho nenhum. Mesmo porque nunca
se deu conta de olhar para o lado, onde pudesse perceber que o rapaz sonhava e
sofria. Também nunca olhou para o firmamento e jamais contou estrelas...
Zé Dadaia, o rapaz que cuidava da roça e sonhava com a moça, deu-se por
agastado. Olhos entristecidos de quem ama sem ser amado. Emagreceu, definhou,
sofreu e quase morreu. Disso compreendeu o arrebatamento a que o homem está
sujeito e perdoou o abandono do pai. Sentiu-se um pouco Zé do Dirceu... Do seu
mal nunca teve cura; viveu a vida inteirinha a olhar para o céu a contar estrelas.
No chão contava os bois todos os dias. Ê boi... Ê boi. Ê boi na estrada.
Autora: Valéria Áureo
In: Conjugando o Amor Líquido