Lembrei-me
de dizer dos gatos, os que rolaram nos meus braços infantis, juntamente com
sete irmãos, como uma coisa só. Falar o que a observação de sentimentos pueris
e alguns anos de maturidade me deram. Gato é só coração. Domesticado... Coração
tímido, escondido, mormente num cantinho exclusivo da casa, onde possa estar em
paz, com suas reflexões. Os homens deveriam observar mais os felinos. Poderiam
aprender muitas coisas. Quem sabe, talvez ocorra o milagre de iluminar um
coração a eles fechado? Quem não ama os gatos não sabe o que é entrega
absoluta.
Gatos...
Sábios para ficarem horas a fio num fio de novelo de lã.
Não sei se lã, ou se pelo de gato, ali, acolá... Possibilidade de reflexão ou
tédio é o gato que se embola na bola de linha, de jornal, de pelúcia. O gato e
o brincar formam uma coisa só. Gatos, apesar disto, são inquilinos inquietantes,
talvez por isso mesmo; pela indefinição do ser. Ora é bicho, ora é brinquedo que se
mexe de um lado a outro se arrastando manhosamente.
Gato vive a sua vida e deixa viver, sem exigir nada de ninguém. Por isto pode ser mesmo inquietante; sim, nada é mais incômodo que a autossuficiência dos gatos; o silencioso bastar-se do gato. Vai e vem, entra e sai, sem importunar ninguém. O só pedir a quem amam um amor sem promessas e dívidas. O só amar a quem os merece já é o bastante.
Gato vive a sua vida e deixa viver, sem exigir nada de ninguém. Por isto pode ser mesmo inquietante; sim, nada é mais incômodo que a autossuficiência dos gatos; o silencioso bastar-se do gato. Vai e vem, entra e sai, sem importunar ninguém. O só pedir a quem amam um amor sem promessas e dívidas. O só amar a quem os merece já é o bastante.
O
gato não satisfaz as necessidades do amor possessivo que domina e estabelece
regras de convivência humana. Gato coexiste pacificamente; não disputa com o humano, não
ameaça, não domina, apenas conquista tudo o que deseja. Compartilha simplesmente o amor. Compartilha a casa;
compartilha o sofá, a cama, o banheiro e tudo o mais. Discretamente, como quem
não ocupa espaço algum, torna-se o dono. Às vezes flutua, porque não há passos. Passa leve brisa
pelos cantos que elege como os seus preferidos... O gato é vento... E não se
deixa ser amestrado, nem acata ordens de quem vive dependente e à custa de
animais. Não! Gato não. Ele só aceita uma relação de independência e afeto. O
mais puro, o mais sincero sentimento expresso no respeito à individualidade. E
como não cede ao homem, mesmo quando dele dependente, é chamado de arrogante,
egoísta, ou falso, o que não é verdade. Mesmo porque ele nem se incomoda com
isso, porque não aceita a falsidade. Gato só admite afeto com troca e respeito
pela individualidade. O gato não gosta de alguém porque precisa gostar para se
sentir melhor. Ele gosta pelo amor que lhe é próprio, que é dele e ele o dá se
quiser e a quem acha que deve dar. Ama determinadas pessoas e ignora outras...
O gato devolve ao homem a exata medida da relação que dele recebe. Sábio e
espelho. Nada pede a quem não o quer. Melhor dizendo, nem perde seu tempo
com quem não o quer... Passa bem longe.
Ele
é exigente com quem ama, mas só depois de muito se certificar de quem se trata.
Se a pessoa merece mesmo o seu amor ele se entrega ao toque, ronrona e explode
em dança de enroscar-se nas pernas da pessoa amada, buscando carinho. Não pede amor, mas se lhe
dá, então ele exige com insinuado disfarce de poder sobreviver sem aquele amor...
Sim,
o gato não pede amor, mas o conquista. Nem depende dele para sobreviver. Quando não o tem, ele
se basta. Vive num canto qualquer, vagueia pela noite e caça sua comida. Mas,
quando sente e reconhece o amor, então ele é capaz de amar e amar muito.
Discretamente, porém sem derramar-se. Não é melodramático, exagerado e histérico; é discreto. Se puder
passar imperceptível, tanto melhor. Dá o amor na justa medida, com o cuidado de
não ultrapassar o espaço de quem o ama. O gato estabelece limites de
cordialidade e respeito; não é intruso. Acomoda-se e espera a sua vez.
O
gato é o mistério... Leva o homem a se ver... O gato não se relaciona com a
aparência do homem. Não com aquilo que está do lado de fora do homem. Ele
vê além do que representa o homem, por dentro e pelo avesso, além do que o
homem finge ser. Relaciona-se com a essência. Vê além dos olhos e hospeda-se na
alma. Aí é que se dá a conquista, o entregar-se até o fim de seus dias.
Entregar-se, conquistar o objeto do amor é que leva tempo. Há que conhecer o
seu dono; estudá-lo intimamente, para se assegurar se vale a pena enamorar-se
dele. Porque, depois do enamorar-se, não há mais retorno. O compromisso
ultrapassará as barreiras da existência. Seu compromisso vai além do tempo... É definitivo;
fulminante!
O
gato sabe quem o ama... Sabe quem o despreza. Paga na mesma moeda... E se
defende do afago amedrontado ou falso esquivando-se. Rejeita aquele que não merece ser amado.
A relação dele é com o que está camuflado na alma. O gato vê! Seleciona, julga,
elege e sabe quem é merecedor e quem não é. Por isso, quando surge nele um ato
de entrega absoluta, de procura pelo colo ou manifestação de afeto, é algo
muito verdadeiro, que não pode ser desprezado. É um gesto de confiança que
honra quem o recebe, pois significa um julgamento. É como se dissesse. Você
merece o meu amor! É aprovação.
O
homem imagina que conhece o gato, mas não conhece. O homem não sabe ver o gato,
mas o gato sabe ver o homem. Se há desarmonia real ou oculta, o gato sente. Se
há solidão, ele sabe e atenua como pode (ele, que enfrenta a própria solidão).
Se há pessoas agressivas em torno ou carregadas de maus fluidos, ele se afasta.
Por pura intuição. Entrega-se a uns, afasta-se de outros. Só ele decodifica o
mistério da alma.
Gato
não dá trabalho... Nada diz, não reclama e não cobra nem exige nada. Afasta-se,
simplesmente. Quem não sabe "ler" a alma do gato, pensa que é um
animal egoísta; não é. É discreto e sabe ser mais conveniente que muitos de
nós. Gato é consistente em regras de etiqueta. Sabe a hora certa de se
recolher, de sumir e de reaparecer... É um animal respeitoso. De
compostura britânica. Presente ou ausente, ele ensina e manifesta algo que não
percebemos. Perto ou longe, olhando ou fingindo não ver, ele está comunicando
códigos que quase nunca sabemos compreender.
O
gato é enigma sim... Vê mais do que vemos... E vê dentro e além de nós. Ele relaciona-se
com fluidos, auras, divindades, espíritos e todo o invisível aos nossos olhos.
Protege-nos daquilo que nem damos conta existir. O gato é mediúnico, bruxo,
alquimista, feiticeiro, guardião e analista. É um exemplo de meditação, sempre estável
ao nosso lado, a ensinar calma, atenção, silêncio e mistério. O gato é um monge
tibetano à disposição de quem o saiba perceber. Monge, sim, refinado,
taciturno, contemplativo e circunspecto, a nos devolver as indagações
temerosas, cujas respostas temos medo de descobrir. O gato sempre responde com
uma nova questão, pelo simples modo de olhar, remetendo-nos à observação
permanente do real, à busca incessante, à certeza de que cada segundo contém a
possibilidade de obter respostas e descobrir soluções...
O
gato é um exemplo diário de afeto verdadeiro e fiel. Suas manifestações são
íntimas e profundas. Exige recolhimento, entrega, atenção, simplesmente por se
deixar ficar aos nossos pés. Gatos deixam-se amar... Pessoas desatentas e
indiferentes não agradam os gatos. Pessoas barulhentas e egoístas os irritam...
Vive do verdadeiro e não se ilude com aparências. Não se deixa enganar por nada
e por ninguém. Gato dorme o sono dos justos, dos que vivem em paz e harmonia
com a Terra e as outras criaturas. Ensina a espreguiçar-se e a ter prontidão
para a ação imediata. Um perfeito professor de Pilates. O gato sai do sono para
o máximo de combate; tensão e elasticidade num segundo... Gato é sensualidade.
Salto, sono, silêncio, descanso, prontidão e ação. Gato é introversão. Gato é
contato com o mistério, com a sapiência, com a escuridão, com a sombra e
finalmente com a luz!..
Autora:
Valéria Áureo
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