Quando ele apareceu, causou impacto. Aliás, como
ocorrera no passado, com aquela estória da pedra no meio do caminho. Até mesmo os amigos modernistas estranharam aquela pedra. Agora,
nada era diferente. Causava estranheza um sujeito sentado eternamente na praia
desta cidade onde habito. Não se movia, não falava, não tinha intenção de sair
dali (pelo que se percebia em seus olhos pequenos e tranquilos), mas o coração
estava cada vez maior, mais acelerado, abraçando a cidade e despertando todos os sentimentos
aprisionados do mundo.
... Havia um homem sentado em um banco da Avenida Atlântica, asfixiado, segundo a ligação feita à polícia no 190. Tinha a cabeça coberta por sacos de plástico e estava imóvel. Causava medo e pânico a visão de um homem silenciado, amordaçado no entardecer de Copa. Sem dúvida, a cidade estava cada vez mais assustadora! No outro dia tudo se elucidou: Carlos Drummond de Andrade estava eternizado em bronze e poesia, em pleno calçadão da Atlântica. Ficará, de hoje em diante, na praia, dando continuidade ao seu quotidiano prazer de passear calmamente entre tantos desconhecidos, pelo calçadão de Copacabana, no final da tarde. Restará lá, voltado, não para o mar, mas para a calçada, onde possa ver toda gente passando e ouvir muitas, muitas palavras, trazidas pelo vento do mar.... Palavras autônomas, libertadas de seus autores, da voz, do traço, vivas, quentes, frias, perfumadas, plenas, vazias...
Qualquer um de
nós, previsível e comum, instintivamente, estaria voltado para o oceano, a
contemplar o mar. Ainda mais quando se trata de mineiro. O mineiro fica, mais
do que qualquer um, ali por horas, extasiado a contemplar aquele mar imenso, as
ondas, o céu, até os olhos se cansarem no infinito e procurarem repouso no
verde das montanhas do Forte do Leme. Mas, tratando-se de Drummond, este
restará sentado de costas para o mar, resistindo eternamente aos “apelos suicidas
das pequenas ilhas” ... Parece que já exauriu toda a beleza da natureza e,
satisfeito, só se ocupa com gente, porque delas terá ainda palavras para ouvir... Não resta nada mais para descobrir no mar ou em suas ilhas, mas nos
homens, ainda há tudo... Tantas palavras a serem escritas... Ele olha e ouve...
Sei que poderia não se tratar mais do olhar malicioso e único, dos garotos que
querem ver meninas bronzeadas passando de biquíni, mas do olhar maduro do homem que
conhece tudo, que já falou de quase tudo, que já se encantou com tudo, diante das suas retinas fatigadas... Mas não descarto a possibilidade de ele ainda se
enternecer com a beleza que passa. Parece que está mais absorto que o de
costume. É quase certo estar ainda cismado com o exagero de pernas que vê passar
e se pergunta “por que tantas pernas brancas pretas amarelas?” Muitas pernas
nas praias, todas tão belas, como eram muitas nos bondes... Não contempla o azul do mar, porque
vê os edifícios/ “casas que espiam os homens que correm atrás das mulheres em
tardes que deixam para trás o azul” e se fazem vermelhas de tantos desejos.
Seus olhos tudo veem na calçada e no entanto “não perguntam nada”. Gastará
muito mais que hora pensando num “verso que se encontra aprisionado e vivo” e
não quer sair, e por isto, inundado de poema, restará sentado naquele banco, onde o provocam moças e novas palavras que se tornam mais belas.
Sentado só,
expõe ao mundo sua solidão vendida em livrarias, fazendo eterno seu olhar
filosófico sobre os acontecimentos, amigos, amor e morte, eternamente preso à
vida. Os homens serão presentes, a vida presente e nem ele fugirá para as
ilhas, mas restará ali, eternamente, na vida presente.
Quando ninguém observar seus movimentos, no meio da noite, ele se
deslocará calmo e cabisbaixo até a areia e, vergado sob o peso de seus
sentimentos, domando mil outras novas palavras, porque tantas delas e tão vivas
incomodam o seu eterno sono, escreverá outras poesias. Furtivamente,
ocultamente, ousadamente, como fez em seus poemas eróticos, sigilosamente, sem
que ninguém se desse conta de sua sensualidade e de sua amada. Escreverá na noite.... Muitas
ondas discretas, cúmplices, apagarão os versos que irão morrer no mar. As ondas
encobrirão - comparsas - as últimas intimidades do poeta e suas novíssimas
palavras...
Sozinho, no escuro, “sem parede para se encostar,
sabendo que a noite esfriou, que o dia não veio”, eu o encontrarei, sentado só,
preso à vida e às palavras vivas que habitam seus pensamentos e preso ainda a
seus companheiros, e ele “não cantará o mundo futuro” ...
Terei acordado
no meio da noite, terei perdido o sono e, “sob a glacial idade de uma estela”,
me sentarei ao seu lado para lhe fazer companhia, querendo descobrir em que
momento as palavras nascem, e se nascem como as estrelas...
Ah! Se eu soubesse como fazê-las nascer, teria largado
para trás essa tristeza acre, exalada de um coração enredado em arame farpado,
que cerca a minha alma e meu gado. Por não saber como nascem as palavras, nem
como vivem, tenho cá um corpo vergado sobre minhas costelas, doído, envelhecido
e magro, andando sempre em silêncio e cabisbaixo. Vivo solitário e mudo, por
não encontrar as palavras certas para dizer que deixei para trás minha cidade,
cercada por montanhas, escondida pedra preciosa esculpida em ventanias, em
busca da minha ilusão de ser poeta...
Paro,
interrompo meu silêncio e o dele. Juntos olhamos a cidade e as pessoas que passeiam pelo calçadão no final do dia. Sento-me ao lado do homem que nada diz, mas que me conforta.
Um menino de rua senta-se ao nosso lado. Timidamente
contempla a estátua, acaricia longamente o rosto do poeta com seus dedos sujos
de graxa, sorri e emocionado afirma: - Parece que ele está vivo, né moça? ...
12/02/2003
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