Apresentação

Total de visualizações de página

sexta-feira, 10 de março de 2017

Madrugada





                                                                       Fonte: YouTube

 


A madrugada de sábado inquietava o coração de Anna, só porque tinha inscrito uma história diferente nos tediosos dias regulares... Na noite de sexta, ainda rolava na cama. Devia ser uma hora, já na virada da noite em dia e uma explosão detonou alguma coisa na portaria do seu prédio. O estrondo acordou todos e as luzes de cada apartamento foram se acendendo, acompanhadas de vozes arrastadas num refrão de sobressaltos. Imprimiam uma iluminação sincronizada de uma cordilheira crescente na escuridão e angústias pontilhadas em janelas procurando explicações... O que houve? Ouviram? Que barulho é esse? Uma estrondosa batida de carro, compacta e seca, limitada em segundos nos dois extremos e pronto. Novamente o vazio de muitas horas no quarto escuro. Anna vestiu-se às pressas e pelo interfone falou com o porteiro que confirmou:
- Foi isso mesmo, Dona Anna, bem aqui na portaria. O morador do nº. 702 ia entrar na garagem e uma moto com um casal apareceu do nada no escuro e eles se chocaram. Vi tudo, confirmava satisfeito, dando-se maior importância que ao caso. A moça da moto voou e caiu em cima do carro estacionado, bem na nossa entrada... O rapaz está no meio da rua. O porteiro investiu-se da vivacidade do repórter e inteirou-se dos detalhes, para contar a quem quisesse ouvir, afastando de si o papel inexpressivo de passar a noite na portaria sempre vazia. De certa forma se inscrevia no acontecimento com a volúpia de celebridade e ia mais longe, na história que ardilosamente criava. Tinha prazer nisso.
Anna nem esperou que ele terminasse a deliciada narrativa, que fazia dele um protagonista atento a minúcias, pensando já em confirmar a dor da desgraçada mãe da vítima. Anna desceu e ficou surpresa com a multidão em torno do acidente, que parecia deixar de ser um infortúnio. Parecia, para sua surpresa, uma improvisada confraternização de final de ano. Tudo muito claro, envolto em muita luz, apesar da noite... Havia muito movimento na rua. Alunos que matavam aula da Universidade Bennette, outros tantos migrando para o Armazém do Chope, porque era sexta-feira virando sábado. Muitos entrando no metrô, na habitual correria de voltar para casa, ou mesmo para um programa em qualquer lugar da zona Sul. Outros se amontoando parando para ver.
O que se via? A moto retorcida na calçada e a moça esparramada no meio fio, gritando alucinada com a perna quebrada, uma desencontrada da outra, e ela inteira envolta em sangue... O rapaz jazia inerte e as pessoas davam conta, em nervoso falatório, do que tinham visto ou imaginado ver. Versões iam surgindo conforme a capacidade inventiva do narrador que via aquilo que queria ver. As mulheres recém saídas de seus apartamentos, de suas camas quentes, tinham os cabelos desfeitos, roupão de chambre e sono manchando os olhos de rímel Elas quase não falavam, absortas na movimentação dos bombeiros emendando os feridos, diante de suas olheiras incrédulas. Os mais velhos concluíam pela irresponsabilidade dos moços, pela bebida, pela droga, velocidade e todos os "vícios" da idade, sem deixar de atentar para uma massa branca e acinzentada no chão que, asseguravam peremptórios, serem os miolos do casal. Tinham certeza... Eram miolos dos desmiolados, resmungavam os mais velhos em solúvel babugem na barra do pijama. Tudo num único pacote de final de semana: juventude, piercing, chope, cabelos lisos de chapinha, tatuagem, cinema, coca, sexo, preservativos, motos e miolos esparramados... Bem que mereciam, sentenciava um carrasco em pijama e chinelos. Parecia cansado de arrastar o tempo e o descaso, coçando a cabeça calva, poucos restos de fios espetados para a cidade, sob os dedos nodosos, os olhos apertados, pouco vendo, na pressa que o fez esquecer os óculos... A esta altura da idade, nada mais importava para ele, nem mesmo a loucura dos jovens e o movimento de quadris que eles faziam na madrugada. 

Ao lado do velho rabugento estava um homem de bermuda, aborrecido com o sono perdido àquela hora e a insônia comprometendo o humor e os olhos arregalados. Mas por que mesmo tinha inventado de sair da cama?... Antes que amanhecesse, ou que fosse muito tarde, ele precisava mesmo era só de dormir. O acidente não estava previsto, mas... Que se danassem os motoqueiros malucos!...
Sexta-feira e muito tarde, quando Anna deveria estar dormindo. Há corpos no chão, entre o asfalto e o trânsito invertido, como também se inverteu a ordem de sorrir e de prazer dentro do coração dos dois amantes agora estirados... Ela vê partes de paredes cimentadas e muros e prédios a encobrir dos seus olhos o mar. O mar distante apenas em duas paralelas ao Aterro. Anna percebe uma luz bem mais distante, onde nasce o verão na Praia do Flamengo e nadam sereias, antes que amanheça e os faróis se apaguem. Jamais se vestirá com as cores do inverno, esta paisagem noturna, urbana, clara de luzes artificiais acesas ao mesmo tempo; exageradamente clareada pelo neon das fachadas das choperias, que afasta as pessoas dessa praia, levando-as a naufragar em terra.
- Quer uma água? Perguntou a senhora pronta para servir com uma garrafa, sorrisos e copos descartáveis, enquanto fazia tudo para sua solidão desfragmentar-se naquela noite diferente. Estimulava detalhes e ideias nas minúcias do ocorrido, para que todos permanecessem horas e horas, plantados no cenário do acidente. Precisava de companhia, mesmo que fosse brevemente naquela calçada de notívagos desconfortáveis e os dois feridos no chão... E bem na minha porta, a senhora da garrafa declarava quase feliz... E bem na minha porta, estão vendo?... E o que ela mais temia, nem era a provável morte dos acidentados. Era retornar solitária para sua casa vazia e enfrentar sua homeopática morte, ainda dentro do elevador; coisa que aguardava todos os dias.
- Não... Obrigado, agora não... Bebo muitas garrafas durante o dia. É bom para os rins e para tudo. Litros e litros... É a resposta do homem rabugento, que vai a caminho de casa, já cambaleando de sono e de ficar tanto tempo de pé, sem se entregar à velhice inevitável e à aposentadoria assassina. Mas foi afirmando, sem pensar ou se incomodar com a delicadeza dela, que vira miolos no asfalto, uma pasta de cérebro dos jovens desmiolados. Era ali que foram parar suas ideias... Ofereceu água a mais outro... E foi outro homem, o de bermudas, que prendeu a atenção dela, que queria alguém para falar, mesmo que de assuntos mórbidos. Foi com trechos de conversas esquisitas de doenças e esquizofrenias que eles se prenderam por muitos minutos. Ele deixou claro para ela que gostaria realmente era de seguir com os bombeiros, só para confirmar com os paramédicos se aquilo tão esquisito e pegajoso no chão era ou não partícula dos miolos, como assegurava o velhote que tinha ido embora. Depois de alguns minutos decidiu, imprevisível para si mesmo, entrar no Armazém do Chope atraído pela claridade, vozerio e uma conversa nova... Antes virou-se para a dona da garrafa e perguntou, só por perguntar, tão desacostumado que estava à sedução e à companhia das mulheres:
- Vem comigo, não vem?... A noite está perdida mesmo, não está? Nem vai dar mais para pegar no sono... Que adianta ficar na cama, rolando sem conseguir dormir, lembrando-se do que viu?...
E ela foi meio desajeitada, tão desacostumada a ser seduzida, deixando os copos e a garrafa nas mãos do porteiro... E, pensando que a noite não estava tão perdida, o seguiu, embora desacostumada da companhia de um homem.
Anna, a que sempre tem um sorriso apaixonante, percebe detalhes expressionistas em tudo que consegue olhar. Também segue para o Armazém. Esmiúça, reflete, aprecia a escuridão desvencilhada pela novidade do acidente, pela luz tíbia e pelo trenzinho correndo nos trilhos, bem lá no alto do restaurante. Mas que mania de prestar atenção em tudo, congelar fotografias instantâneas na cabeça sempre e fulgurantemente ocupada com pensamentos!...
Agora ela vê o sujeito que está sentado  à uma mesa, a abraçar a senhora da garrafa de água, enamorada, enquanto um homem de barba branca, óculos e nariz ligeiramente curvado, a observa também e bebe sozinho... Perto dele está mais um casal; mais dois, mais três casais improvisados de quarentões e cinquentões recém-descobertos na portaria do 88 da Rua Marquês de Abrantes. Uns combinam até muito bem, outros não...  Muitos não fazem o menor sentido. Fazem pares por acaso, organizados pela excentricidade do ocorrido na experiente noite, por conta do trágico e da lua costumeiramente alcoviteira. Enquanto isto Juarez, o prestativo garçom, passa de mesa em mesa, atento aos pedidos e às gorjetas, pronto a distribuir a sua simpatia diluída em chope…
Depois que os bombeiros se foram, as ruas ficaram desertas e o vento assobiou como se fosse uma pessoa vagando na escuridão, contornando todas as esquinas e ultrapassando o tempo; mas não conseguiu proibir que amanhecesse nem mesmo na Paissandu, na Senador Vergueiro e nas imediações da Praia do Flamengo.
O homem de bermuda tira, para surpresa da mulher, uma agenda do bolso da camisa e se exibe...
- Tenho todos os domingos ocupados... Mas anota o telefone da mulher da garrafa de água, intempestivamente apaixonada e jura que vai ligar ainda hoje, porque já está quase amanhecendo. Tudo dando muito certo, porque ambos moram no mesmo prédio, no mesmo bloco; ele no andar de cima do dela, vizinhos na vertical... E vai mesmo, porque a achou bela e jovial e bem humorada e ele já está enjoado de não ter mais mulher em casa, e mais enjoado ainda de estórias macabras, nomes de doenças, bulas de remédios e dietas sem fim; enjoado de ver filmes sem ter com quem comentar... Vai arrastá-la para todos os cinemas e, com mais tempo, vai alojá-la em sua cama, para sempre, porque também não aguenta mais viver sem amor, controlando a pressão arterial com Naprix... Todos os filmes, todas as ilusões quer compartilhar com ela, é isto. É certo que ela vai querer seguir junto, toda feliz em se ajeitar muito bem com ele, até mesmo só para comer uma pizza enquanto repartem entre si a vida e uma taça de vinho. Ela é romântica, acredita no amor e em horóscopo e adora cinema, como ele... Cuidadosa, ficará feliz em viver um novo romance e se apaixonará novamente... Quem sabe agora, definitivamente. Tão real e tão perfeito como no cinema, ela constata que o amor mora ao lado. Também não quer mais só ter solidão, trabalho e amarguras. Prefere ter uma nova história para escrever daqui por diante e um homem carinhoso na cama... Talvez seja apropriado ver Charles Chaplin, Charles Chaplin, Charles Chaplin… repete com pequenos pulinhos e palmas toda animada, como uma menina.
- Onde é que vamos ver isso? Eles já planejam preencher os sábados e a vida, daí para frente de maneira diferente... "Tempos Modernos". É isso. Tempos Modernos e seremos “ficantes”, o que acha?
O incansável garçom Juarez enche o copo de vidro, coloca-o sobre o balcão e desenha no ar um gesto enigmático: um misto de golpe marcial com elegância da bênção sacerdotal. Sinaliza com sua mímica artesanal para alguém sentado sozinho, avisando que está servido. O gesto que parecia uma bênção afinaria mais com um vinho, mas não faz mal, pensa Anna que se vira e vê um grupo de adolescentes com roupas ousadas; uma delas enverga um boné branco e uma minúscula saia…
Muitos já saem do Armazém... Sim! Alguns bêbados acreditam que estão flutuando no Passeio da Fama, pisando em estrelas que refletem a luz dos postes. Caminham cambaleando, como se sustentando um barril de chope, ou talvez um barril de pólvora nas pontas dos pés, equilibrando mil borbulhas subindo pela goela... Aonde vão? Perguntou o garçom, percebendo que saiam sem pagar... Mas não conseguiu alcançá-los.
Da mesa ao lado Anna ouviu: vou a caminho de casa, estou muito, muito… cansado. Ah! Espera! Gritou o vizinho do apartamento de Anna, que ela mal conhecia e que bebia sozinho e usava o celular. Escuta... Gritava no aparelho, a nossa vizinha vai te mandar beijos... Pelo celular... Querida!... Alô!
- Vem, Anna, manda um beijo para a minha mu... Mas Anna desvia o sorriso mudo, para bem longe do bêbado e da sua amada que ela nem sabe muito bem quem é.
O Bêbado vizinho insiste e volta a tentar uma conexão entre a esposa ao telefone e Anna; talvez quisesse que ela desse o testemunho de seu paradeiro para a mulher que tinha ficado em casa... Querida... Estou no Armazém do Chope, aqui na Marquês e Anna vai falar, insiste o bêbado... Anna vai te mandar um bei… mas ela bloqueia a investida do vizinho quase desconhecido, que pairava num fio invisível esticado entre ele e o celular. Ela apenas sorri para os outros, envergonhada, e se afasta dos casais recém-formados depois do acidente de moto.
Uma jovem sai do Armazém como se saísse do Club a Paris Hilton vestida de Britney Spears, equilibrando-se em incomensurável salto, altura artificial e olhos de cílios alongados, e boca e seios de expectativas de elegância e certeza de distorção da coluna... Mas os homens, principalmente os mais velhos, não tiram os olhos dela… A delicada Anna ri-se da invasão dos olhos dos homens. Invasões febris, incandescentes memórias joviais... Acha natural, humano, divertido, perceber como homens maduros se ressentem em envelhecer... Sente-se a falta dos comentários de palavras, mas o silêncio eloquente das bocas salivando, o olhar constante através de uma lente, com a espessura de outra representação da vida, falam bem mais. Velhos que se sentem meninos nessas audácias, confortando-se, uns com os outros, contam mentiras de conquistas, temendo na verdade conferir suas virilidades decadentes. Eles olham para as partes mais encantadoras da "Britney" equilibrista... Assim, comungando um olhar invasivo e obsceno, asseguram-se de seus desejos e a vitalidade do sexo em declínio... Mas teimam em continuar desejando mulheres tão jovens, ignorando a sabedoria e a capacidade de amar das mulheres mais maduras.
O vento vindo da praia passa mais quente  no arremedo longilíneo das coxas da equilibrista de saltos gigantescos. Uma mulher oxigenada, com os cabelos lisos até os ombros, veste um top azul. Também quer retardar a morte em moda pueril de minissaias e namorados adolescentes. Dança como se todo o seu corpo contivesse a fórmula perfeita do prazer; à sua volta estão duas mulheres de recorte mais clássico, de calça e camisa, que se abraçam e se beijam formando um casal… "Tempos Modernos"... A noite está a perder os seus contornos, a lua está a dar o seu lugar ao sol. A cidade a ganhar sombras e formas novas e o mar é fustigado com riscos de luz… E os que só costumavam ver a noite de seus quartos, através das persianas, descobriram que ela é clara e a cidade fervilha em qualquer hora e lugar e os encontros são bem possíveis...
A mulher que ofereceu água ao homem de bermudas formou com ele um casal provisório que seguiu junto para casa.
No meu apartamento, ou no seu? Ele perguntou mais sorridente do que nunca. Ela nada respondeu, mas o abraçou.Tomaram o mesmo elevador, de mãos dadas desceram no mesmo andar. Tempos Modernos...
O homem rabugento ainda está dormindo, apesar de o dia ir bem adiante à beira da praia. Alguns ingênuos pensam que tudo é como antes, na Marquês de Abrantes.

Autora: Valéria Áureo