Ilustração: Internet
- Oi, aqui é Eduardo, o seu atendente
virtual! Você sabia que a sua casa já tem banda larga ilimitada, para acessar
de qualquer ponto? Eu posso...
Eu interrompo o Eduardo e deixo o
telefone fora do gancho. Eduardo, do outro lado da linha continua falando,
falando... Minha cabeça acelera e faz considerações. Um atendente virtual? Banda
larga ilimitada em casa? Minha cabeça tresloucada já entende que talvez Eduardo
seja virtuoso. Teria eu entendido errado?Ando confusa... Um atendente virtuoso!
Virtudes cardeais, teologais, humanas? Ou seria um virtuose? Um desses que tem
uma banda de rock? Quem sabe pianista,
saxofonista, que faz soar ao longe as notas da felicidade de um blue. Penso em música. Penso no azul, no sereno som
combinado com neblina. Flerto com a ilusão de uma ligação amorosa. Penso em
virtudes. Mas seria muita sorte minha um atendente virtuoso, ao menos, e dono
de atributos que já não constam mais nos hábitos e condutas.
Voltei o meu pensamento para as
quatro virtudes cardeais, como as estações do ano, os quatro elementos, as
quatro fases da vida, os quatro pontos cardeais, os quatro cavaleiros do
apocalipse... Eu e minha mania de associação de ideias... Já é outono, mas
imagino viver uma tarde de verão em que cobro virtudes de um atendente virtual.
Quem sabe ele seja dono de prudência, a primeira da lista.
Como é difícil Eduardo, ser prudente. Se o fosse não ligaria para mim, pois sou
muito crítica e inoportuna. Sou impaciente! Posso perder o controle até mesmo
ao telefone. Não, Eduardo não é prudente. Prudência é sabedoria, previdência,
precaução. A prudência coloca a nossa atenção na preparação dos fatos e eventos
e nunca na precipitação nem no amadorismo ou improvisação. Eduardo, o atendente
virtual não improvisava, porque o texto era gravado. Não se colocava ao pé do
precipício. Contudo aposto que ensaiou uma dezena de vezes, antes de gravar a
mensagem. Precavido era.
Quem sabe, o Eduardo da Vírtua tenha
temperança. A segunda virtude trata do
autocontrole, autodomínio, renúncia, moderação. A temperança ordena afetos,
domestica os instintos, sublima as paixões, organiza a sexualidade, modera os
impulsos e apetites. Abre o caminho para a continência, a castidade, a
sobriedade, o desapego. Bom, eu concluo a favor do atendente: temperança ele
deve ter, pois autodomínio e moderação são para poucos e ele demonstra na voz
certa cautela. A temperança não permite que sejamos escravos, mas livres e
libertadores e nos encaminha para o cumprimento dos deveres e para a maturidade
humana. Sem renúncia não há maturidade. Grande fruto da renúncia é a alegria e
a paz. Não sei por que, mas me veio à cabeça a ideia dos temperos e sabores e
contrastes: doces, salgados, amargos, ácidos... Não seria a temperança a arte
de saber misturar tudo isso, na dosagem certa e preparar uma ceia deliciosa? Sabedoria
para tirar o amargor da vida e colocar a doçura na medida certa para não
enjoar. Parece-me que a temperança é a medida certa para todos os prazeres.
Fortaleza. Sim, eis a terceira
virtude. Eduardo, o atendente
virtual seria uma fortaleza? Faz-nos fortes no bem, na fé, no amor. Leva-nos a
perseverar nas coisas difíceis e árduas, a resistir à mediocridade, a evitar
rotina e omissões. Pela fortaleza vencemos a apatia, a acomodação e abraçamos
os desafios e a profecia. É virtude dos profetas, dos heróis, dos mártires e
dos pobres. Mais uma vez a minha cabeça foge... Não tenho coragem para os
grandes desafios e me confesso afeita às acomodações. Se eu pudesse escolher
teria sido um gato (quieto sossegado no meu canto, sem qualquer tipo de
amolações, a começar por telefonemas...). Acredito que o Eduardo da Vírtua
também esteja acomodado no seu canto, repetindo, repetindo, repetindo...
Coitado do Eduardo! Seu mal será a intemperança? Pode ser...
E lá vou eu à última virtude
cardinal: Justiça. Ela regula nossa
convivência, possibilita o bem comum, defende a dignidade humana, respeita os
direitos humanos. É da justiça que brota a paz. Sem a justiça nem o amor é
possível. Agora eu passo a me lembrar de todos os amores impossíveis e concluo
que fui muito injustiçada nesta vida. Não tive paz nos meus afetos. Há uma
lista de possibilidades, com as quais sonhei e, no entanto... Bom, a culpa foi
minha, pois eu não tive a tal coragem, advinda da força. Já notei que as
virtudes andam encadeadas; se falta uma delas, nós já flertamos com as desventuras.
Talvez me tenham faltados os temperos; aqueles que a baiana tem... Mas, sejamos
justos: quem respeita os direitos humanos, afinal? E a justiça, como anda?
Talvez devesse perguntar ao Eduardo, que continua a falar ao telefone, enquanto
eu analiso todas as possibilidades.
Retomo o telefone e coloco o aparelho
ao ouvido. Meu atendente virtual diz: para consertos, digite o número quatro!
Mas, não me provoque, Eduardo!
Bom, Eduardo não teria ido tão longe,
pensando em Platão ou São Tomás de Aquino ao fazer sua gravação para a Vírtua. E
ele, Eduardo, ainda me diz que minha casa tem banda larga ilimitada. Que nada!
Nem banda, nem bateria, nem cozinha, nem sax. Aqui há muito não se ouve um blue
ou um jazz. Aqui não há concerto! Bem, não sei muita coisa de meu atendente
virtual, mas afirmo que ele é fiel, lá isso é, pois me liga todos os dias,
impreterivelmente às dez da manhã, às quinze da tarde e às dezenove horas. Já é
um conforto ter três ligações ao dia, porque, pelo menos assim alguém me liga.
Valéria Áureo