Apresentação

Total de visualizações de página

quarta-feira, 11 de julho de 2018

Provisão



          Chuva de Prata
Se quiser uma aguinha gelada, um algodão doce, pega aqui comigo!...
O ambulante movimentava a rua parada com sua voz estridente. Tudo estava em seu lugar; estranhamente em seu lugar de segunda-feira, terça, quarta... De ágil mesmo, só palavras ressoando na rua vazia. Uns poucos transeuntes falavam ao celular e deixavam mensagens aflitas: temos que estocar mantimentos! Não se sabe quanto tempo essa paralisação vai durar. E se faltar?... E divulgavam as suas necessidades e intenções de água, comida, material de higiene, aos gritos nervosos. E nada mais se poderia ouvir, senão os interesses individuais.
Pensei no que eu poderia querer, para fazer um estoque, uma reserva de bens de primeira necessidade. De que eu precisaria e por quanto tempo?Talvez eu começasse por um arsenal de palavras, para depois pensar no resto. Estranho, não é? Eu e o meu vício de colecionador de palavras. Na verdade, eu gostaria mesmo é de uma chuvinha fresca de palavras como: país / mais/ provisório/ louco/ onde/ previsão/ mistura/ urnas / gente/ fatídica/ se / entende/ tem/ /mais/ caos / fome/ confusão / presidência / previdência / social / inocência / indecente / eleição / corrupção / socorro!...
Socorro, vou morrer afogada! Não contava com esse temporal! Eu só queria uma chuva fininha, de prata...
Valéria Áureo

terça-feira, 10 de julho de 2018

Segunda Pele


                                                               Ilustração: Internet


          Eu usava jeans lavado, rasgado; um adereço para se ajustar ao coração desbotado de juventude sem paradeiro. Havia tempos que eu vivia nesse desleixo, quase despido de energia e voz, sem saber sequer sonhar. Um ser adoecido, rebelde, cinza, apagado, produto da moral do país. Mais um ser aniquilado pela decepção; constatação da destruição e caos. Sabia que meu coração estava sintonizado in blue, apesar de sons irreconhecíveis entrando pelas janelas. Todo dia uma melodia de escárnio rasgava a minha pátria. Ó Pátria desvalida! Ó Pátria desditosa! Ó Pátria que desconheço! Pensamentos arrancados de um novelo embaraçado de ideias me enforcavam.
Vesti amarelo. Tênis azuis com faixas verdes e o hino reverberando no crânio.  E, a partir disso, minha identidade aflorou, irrigando os meus poros em uma explosão. Saí e gritei em defesa da pátria aviltada. E não tirarei a camisa da Pátria, até o fim das eleições ( e dos meus dias). Vesti a Bandeira do Brasil, agora morando em mim, se tornando a minha segunda pele.

Autora: Valéria Áureo

segunda-feira, 2 de julho de 2018

Premonição Genial


O menino era tímido e bem arredio. Nunca falava. Nas raras vezes em que tentava falar, se arrastava nervosamente, salpicando as sílabas em tropeços angustiantes para quem o ouvia. Quando a família constatou que ele era gago, tratou de levá-lo a uma fonoaudióloga. Apesar disso, não houve jeito. O garoto era tímido demais até mesmo para tentar corrigir o problema. Os pais temiam que a gagueira pudesse comprometer o seu futuro. Eles sonhavam sempre o melhor para seus filhos. Que o menino conquistasse o mundo era o que ansiavam.
Na escola deu-se uma revelação. Ele não se comunicava verbalmente e apenas balbuciava uma sílaba em vã tentativa: Gu... Gu... Gu... E não conseguia ir adiante. Os colegas se davam por satisfeitos em chamá-lo Gu, o gaguinho. Afinal Gu era um prodígio e demonstrava saber mais do que professores e mesmo o diretor, um renomado doutor. Gu era accessível e atencioso e não se incomodava em ajudar. A tudo respondia em uma velocidade inimaginável e sem pestanejar. O único ponto interessante é que só respondia por escrito. Já tinha desistido de falar. A primeira vez em que seus colegas ouviram palavra diferente foi em um jogo de futebol. Misteriosamente ouviram-no gritar Gol! Gol! Gol! Todos ficaram com a impressão de que Gu adorava futebol. Assim, em troca de conhecimento privilegiado, Gu, o amigo gaguinho, era levado aos campos de futebol, onde assistia aos jogos, dando em troca o seu imponderável saber. Enquanto acompanhava o jogo ele fazia por escrito os trabalhos dos colegas com grande presteza. Um fenômeno, diziam todos maravilhados e agradecidos, porque já não sabiam mais viver sem recorrer a ele. Gu só parava de escrever quando acontecia um gol. Era quando gritava sorridente. Gol! Gol! Gol!
Os anos se passaram e Gu foi para Stanford, onde se comprovou que ele sabia muito mais dos que os mestres, os doutores, os reitores. Gu era um gênio! Em Stanford Gu conheceu um brilhante colega russo, Sergey com quem se identificou de imediato. Gu não falava nada e Sergey falava russo, o que poderia ser um grande empecilho para a comunicação, mas ambos escreviam em todos os idiomas do planeta e se comunicavam muito bem e com agilidade. Os dois jovens eram ilustres estudantes da Universidade de Stanford reconhecidos como geniais. Tornaram-se tão amigos que criaram um projeto de doutorado cujo foco era criar um buscador que fosse muito rápido no resultado. O buscador tornou-se um sucesso e a empresa que eles criaram recebeu o nome Google. Descobriu-se que Gu, que sabia gritar gol, se chamava Larry Page. Ambos ( Sergey Brin e Larry Page) ficaram milionários. Gu, para os colegas, seria sempre o amigo gaguinho, o sábio. E, como todo gênio, o seu saber se espalhou pelo mundo inteiro. Os pais de Gu não se decepcionaram, apesar da gagueira do menino.
Autora: Valéria Áureo
In: Docilidade de Sobreviventes
Publicada em O Imparcial de Rio Pomba

Ligações Reconfortantes V


                                                                              Ilustração: Internet


          - Oi, aqui é Eduardo, o seu atendente virtual! Você sabia que a sua casa já tem banda larga ilimitada, para acessar de qualquer ponto? Eu posso...
          Eu interrompo o Eduardo e deixo o telefone fora do gancho. Eduardo, do outro lado da linha continua falando, falando... Minha cabeça acelera e faz considerações. Um atendente virtual? Banda larga ilimitada em casa? Minha cabeça tresloucada já entende que talvez Eduardo seja virtuoso. Teria eu entendido errado?Ando confusa... Um atendente virtuoso! Virtudes cardeais, teologais, humanas? Ou seria um virtuose? Um desses que tem uma banda de rock?  Quem sabe pianista, saxofonista, que faz soar ao longe as notas da felicidade de um blue.  Penso em música. Penso no azul, no sereno som combinado com neblina. Flerto com a ilusão de uma ligação amorosa. Penso em virtudes. Mas seria muita sorte minha um atendente virtuoso, ao menos, e dono de atributos que já não constam mais nos hábitos e condutas.
          Voltei o meu pensamento para as quatro virtudes cardeais, como as estações do ano, os quatro elementos, as quatro fases da vida, os quatro pontos cardeais, os quatro cavaleiros do apocalipse... Eu e minha mania de associação de ideias... Já é outono, mas imagino viver uma tarde de verão em que cobro virtudes de um atendente virtual. Quem sabe ele seja dono de prudência, a primeira da lista. Como é difícil Eduardo, ser prudente. Se o fosse não ligaria para mim, pois sou muito crítica e inoportuna. Sou impaciente! Posso perder o controle até mesmo ao telefone. Não, Eduardo não é prudente. Prudência é sabedoria, previdência, precaução. A prudência coloca a nossa atenção na preparação dos fatos e eventos e nunca na precipitação nem no amadorismo ou improvisação. Eduardo, o atendente virtual não improvisava, porque o texto era gravado. Não se colocava ao pé do precipício. Contudo aposto que ensaiou uma dezena de vezes, antes de gravar a mensagem. Precavido era.
          Quem sabe, o Eduardo da Vírtua tenha temperança. A segunda virtude trata do autocontrole, autodomínio, renúncia, moderação. A temperança ordena afetos, domestica os instintos, sublima as paixões, organiza a sexualidade, modera os impulsos e apetites. Abre o caminho para a continência, a castidade, a sobriedade, o desapego. Bom, eu concluo a favor do atendente: temperança ele deve ter, pois autodomínio e moderação são para poucos e ele demonstra na voz certa cautela. A temperança não permite que sejamos escravos, mas livres e libertadores e nos encaminha para o cumprimento dos deveres e para a maturidade humana. Sem renúncia não há maturidade. Grande fruto da renúncia é a alegria e a paz. Não sei por que, mas me veio à cabeça a ideia dos temperos e sabores e contrastes: doces, salgados, amargos, ácidos... Não seria a temperança a arte de saber misturar tudo isso, na dosagem certa e preparar uma ceia deliciosa? Sabedoria para tirar o amargor da vida e colocar a doçura na medida certa para não enjoar. Parece-me que a temperança é a medida certa para todos os prazeres.
          Fortaleza. Sim, eis a terceira virtude. Eduardo, o atendente virtual seria uma fortaleza? Faz-nos fortes no bem, na fé, no amor. Leva-nos a perseverar nas coisas difíceis e árduas, a resistir à mediocridade, a evitar rotina e omissões. Pela fortaleza vencemos a apatia, a acomodação e abraçamos os desafios e a profecia. É virtude dos profetas, dos heróis, dos mártires e dos pobres. Mais uma vez a minha cabeça foge... Não tenho coragem para os grandes desafios e me confesso afeita às acomodações. Se eu pudesse escolher teria sido um gato (quieto sossegado no meu canto, sem qualquer tipo de amolações, a começar por telefonemas...). Acredito que o Eduardo da Vírtua também esteja acomodado no seu canto, repetindo, repetindo, repetindo... Coitado do Eduardo! Seu mal será a intemperança? Pode ser...
          E lá vou eu à última virtude cardinal: Justiça. Ela regula nossa convivência, possibilita o bem comum, defende a dignidade humana, respeita os direitos humanos. É da justiça que brota a paz. Sem a justiça nem o amor é possível. Agora eu passo a me lembrar de todos os amores impossíveis e concluo que fui muito injustiçada nesta vida. Não tive paz nos meus afetos. Há uma lista de possibilidades, com as quais sonhei e, no entanto... Bom, a culpa foi minha, pois eu não tive a tal coragem, advinda da força. Já notei que as virtudes andam encadeadas; se falta uma delas, nós já flertamos com as desventuras. Talvez me tenham faltados os temperos; aqueles que a baiana tem... Mas, sejamos justos: quem respeita os direitos humanos, afinal? E a justiça, como anda? Talvez devesse perguntar ao Eduardo, que continua a falar ao telefone, enquanto eu analiso todas as possibilidades.
          Retomo o telefone e coloco o aparelho ao ouvido. Meu atendente virtual diz: para consertos, digite o número quatro! Mas, não me provoque, Eduardo!
          Bom, Eduardo não teria ido tão longe, pensando em Platão ou São Tomás de Aquino ao fazer sua gravação para a Vírtua. E ele, Eduardo, ainda me diz que minha casa tem banda larga ilimitada. Que nada! Nem banda, nem bateria, nem cozinha, nem sax. Aqui há muito não se ouve um blue ou um jazz. Aqui não há concerto! Bem, não sei muita coisa de meu atendente virtual, mas afirmo que ele é fiel, lá isso é, pois me liga todos os dias, impreterivelmente às dez da manhã, às quinze da tarde e às dezenove horas. Já é um conforto ter três ligações ao dia, porque, pelo menos assim alguém me liga.

Valéria Áureo