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segunda-feira, 2 de julho de 2018

Ligações Reconfortantes V


                                                                              Ilustração: Internet


          - Oi, aqui é Eduardo, o seu atendente virtual! Você sabia que a sua casa já tem banda larga ilimitada, para acessar de qualquer ponto? Eu posso...
          Eu interrompo o Eduardo e deixo o telefone fora do gancho. Eduardo, do outro lado da linha continua falando, falando... Minha cabeça acelera e faz considerações. Um atendente virtual? Banda larga ilimitada em casa? Minha cabeça tresloucada já entende que talvez Eduardo seja virtuoso. Teria eu entendido errado?Ando confusa... Um atendente virtuoso! Virtudes cardeais, teologais, humanas? Ou seria um virtuose? Um desses que tem uma banda de rock?  Quem sabe pianista, saxofonista, que faz soar ao longe as notas da felicidade de um blue.  Penso em música. Penso no azul, no sereno som combinado com neblina. Flerto com a ilusão de uma ligação amorosa. Penso em virtudes. Mas seria muita sorte minha um atendente virtuoso, ao menos, e dono de atributos que já não constam mais nos hábitos e condutas.
          Voltei o meu pensamento para as quatro virtudes cardeais, como as estações do ano, os quatro elementos, as quatro fases da vida, os quatro pontos cardeais, os quatro cavaleiros do apocalipse... Eu e minha mania de associação de ideias... Já é outono, mas imagino viver uma tarde de verão em que cobro virtudes de um atendente virtual. Quem sabe ele seja dono de prudência, a primeira da lista. Como é difícil Eduardo, ser prudente. Se o fosse não ligaria para mim, pois sou muito crítica e inoportuna. Sou impaciente! Posso perder o controle até mesmo ao telefone. Não, Eduardo não é prudente. Prudência é sabedoria, previdência, precaução. A prudência coloca a nossa atenção na preparação dos fatos e eventos e nunca na precipitação nem no amadorismo ou improvisação. Eduardo, o atendente virtual não improvisava, porque o texto era gravado. Não se colocava ao pé do precipício. Contudo aposto que ensaiou uma dezena de vezes, antes de gravar a mensagem. Precavido era.
          Quem sabe, o Eduardo da Vírtua tenha temperança. A segunda virtude trata do autocontrole, autodomínio, renúncia, moderação. A temperança ordena afetos, domestica os instintos, sublima as paixões, organiza a sexualidade, modera os impulsos e apetites. Abre o caminho para a continência, a castidade, a sobriedade, o desapego. Bom, eu concluo a favor do atendente: temperança ele deve ter, pois autodomínio e moderação são para poucos e ele demonstra na voz certa cautela. A temperança não permite que sejamos escravos, mas livres e libertadores e nos encaminha para o cumprimento dos deveres e para a maturidade humana. Sem renúncia não há maturidade. Grande fruto da renúncia é a alegria e a paz. Não sei por que, mas me veio à cabeça a ideia dos temperos e sabores e contrastes: doces, salgados, amargos, ácidos... Não seria a temperança a arte de saber misturar tudo isso, na dosagem certa e preparar uma ceia deliciosa? Sabedoria para tirar o amargor da vida e colocar a doçura na medida certa para não enjoar. Parece-me que a temperança é a medida certa para todos os prazeres.
          Fortaleza. Sim, eis a terceira virtude. Eduardo, o atendente virtual seria uma fortaleza? Faz-nos fortes no bem, na fé, no amor. Leva-nos a perseverar nas coisas difíceis e árduas, a resistir à mediocridade, a evitar rotina e omissões. Pela fortaleza vencemos a apatia, a acomodação e abraçamos os desafios e a profecia. É virtude dos profetas, dos heróis, dos mártires e dos pobres. Mais uma vez a minha cabeça foge... Não tenho coragem para os grandes desafios e me confesso afeita às acomodações. Se eu pudesse escolher teria sido um gato (quieto sossegado no meu canto, sem qualquer tipo de amolações, a começar por telefonemas...). Acredito que o Eduardo da Vírtua também esteja acomodado no seu canto, repetindo, repetindo, repetindo... Coitado do Eduardo! Seu mal será a intemperança? Pode ser...
          E lá vou eu à última virtude cardinal: Justiça. Ela regula nossa convivência, possibilita o bem comum, defende a dignidade humana, respeita os direitos humanos. É da justiça que brota a paz. Sem a justiça nem o amor é possível. Agora eu passo a me lembrar de todos os amores impossíveis e concluo que fui muito injustiçada nesta vida. Não tive paz nos meus afetos. Há uma lista de possibilidades, com as quais sonhei e, no entanto... Bom, a culpa foi minha, pois eu não tive a tal coragem, advinda da força. Já notei que as virtudes andam encadeadas; se falta uma delas, nós já flertamos com as desventuras. Talvez me tenham faltados os temperos; aqueles que a baiana tem... Mas, sejamos justos: quem respeita os direitos humanos, afinal? E a justiça, como anda? Talvez devesse perguntar ao Eduardo, que continua a falar ao telefone, enquanto eu analiso todas as possibilidades.
          Retomo o telefone e coloco o aparelho ao ouvido. Meu atendente virtual diz: para consertos, digite o número quatro! Mas, não me provoque, Eduardo!
          Bom, Eduardo não teria ido tão longe, pensando em Platão ou São Tomás de Aquino ao fazer sua gravação para a Vírtua. E ele, Eduardo, ainda me diz que minha casa tem banda larga ilimitada. Que nada! Nem banda, nem bateria, nem cozinha, nem sax. Aqui há muito não se ouve um blue ou um jazz. Aqui não há concerto! Bem, não sei muita coisa de meu atendente virtual, mas afirmo que ele é fiel, lá isso é, pois me liga todos os dias, impreterivelmente às dez da manhã, às quinze da tarde e às dezenove horas. Já é um conforto ter três ligações ao dia, porque, pelo menos assim alguém me liga.

Valéria Áureo

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