Bem tarde da
noite, minha mãe me liga de casa e, entre muitas saudades me pergunta: onde
foram parar as borboletas, minha filha? É que a cidade está coberta de flores
nas acácias, quaresmas, flamboyants. Tudo aberto em primavera, mas não vi mais borboletas. Na hora até me
assustei e senti-me responsável pelo desaparecimento delas. Teria eu
aprisionado todas, como já fizera no passado?...
Formigas, moscas, borboletas e o que mais há no
mundo para se ver. O que eu pudesse pegar eu colecionava com a avidez dos meus
olhos e a agilidade das mãos, com pressa de quem quer guardar tudo para si. Um
dia aprisionei muitas borboletas em uma caixa de tela fina, querendo guardar e
eternizar o voo e a beleza delas. Não compreendia a fragilidade da vida e
desconhecia a fugacidade da existência. Só pensava em guardá-las ao montes, da
mesma forma que colecionava papéis, pontas de lápis de cor, botões e tudo que
despertasse brilho nos meus olhos. Com o mesmo ímpeto aprisionei borboletas,
distanciando-as das flores, do ar, da liberdade e voo, para retê-las para
sempre. Jamais imaginei que se perderiam; ao contrário, pensava perpetuá-las
como num quadro vivo. Só fui compreender que não se pode reter a beleza, nem a
juventude, quando as encontrei caídas como pétalas no fundo da caixa. Antes
lagarta repulsiva e crisálida, depois o leve inseto.
Borboletas se comunicam por sons oriundos de suas
asas, eu aprendi. Falam-se num tímido farfalhar inaudível, percebido
recentemente por pesquisadores. Um som brisa na seda fina de suas asas
coloridas. Mas era óbvio que deviam se falar. Nunca imaginei que qualquer
criatura deste universo pudesse não falar... Ainda mais as borboletas, que têm
tanto o que dizer sobre os campos e as flores e os voos sobre as cercanias e
sobre meninas que correm para alcançá-las... Os homens se falam por palavras ou
por ausência delas. Gestos, silêncios, olhos e lágrimas...
São muitas borboletas, oriundas de toda parte... Aprendi, depois de
grande, sobre uma viajante borboleta, vinda das longas migrações do continente
americano, num bater de asas que suporta três mil quilômetros. Incansável
maratonista que vem do Canadá, em setembro, até as florestas de Pinheiros do
México, onde chega, em novembro, exatamente no dia dos Mortos. Para os
habitantes da região as borboletas representam a alma dos entes queridos, que
retornam em revoada. Pois agora elas invadiram Portugal e se deixam ficar nas
zonas de várzeas das ribeiras de Algarves, e sua presença já é suficiente para
tornar a região mais bonita, onde se
confundem o inseto e a flor. Linda forma de eternizar as pessoas que
amamos, imaginar que vêm nos rever, ao menos uma vez, disfarçadas em mágicas
criaturas. Alguns as concebem estrelas perdidas na dimensão infinita do céu;
assim são mais distantes. Prefiro imaginá-las borboletas, mais ao alcance dos
olhos e das mãos..
Tive uma caixa de borboletas
amarelas, das que voavam numa tarde distante, no quintal de minha casa, sem
saber do sentimento de aprisionamento e solidão. Não soube pensar nelas, só em
mim. Eu era ainda menina e meninas só sonham, brincam, riem e algumas, como eu,
aprisionam borboletas, observam formigas, dançam com moscas, se iluminam com
vaga-lumes e se enternecem com joaninhas ... Hoje fico mais tranquila com minha
forma de prestar atenção em tudo. Damien Hirst foi mais sábio e pintou diáfanas
borboletas. Salvador Dali foi mais genial, pintou e eternizou borboletas em uma
tela suave, leve que faz o coração alçar, perdido na transparência delas. Também
eu desenhei tantas, e colori, e imaginei pousar em muitas cores e perceber
tantos perfumes. Meu pueril fascínio pelo pequeno ser não me permitiu
guardá-las para sempre, como os pintores souberam fazer. Eu, infantilmente,
ainda tenho aprisionadas as borboletas que peguei. Embora não possam ser
apreciadas como uma valiosa tela num museu, elas me permitem voar, voar,
voar...
Bem mãe, já sei... as borboletas estão livres, voando nos azuis dos
seus olhos.
Valéria Áureo - O Imparcial
31/09/2004