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domingo, 28 de julho de 2019

Dualidade explícita ( amor no Face)

Fonte de Ilustração: Internet


Em sua dualidade explícita, Ângela mantinha em equilíbrio a crueldade e a compaixão, o perdão e a vingança, como flores diferentes dispostas displicentemente no mesmo jarro. Um pote cheio de água e arranjos; um vaso de mágoas e lágrimas. Dizia que odiava e amava; dizia que vivia e morria por ele.  Seus olhos riam enquanto a boca se rebelava. O olhar era doce e a fala, salgada. 
No grupo de amigos ainda preservava a última conversa, a foto escolhida para o perfil, a última e intempestiva curtida; um like superficial. O perfil dele ainda a seguia como um espião, um fantasma sombrio e frio. Era tão presente como uma sombra na areia quente, ao meio dia. Apenas seguia, e nada mais; talvez por esquecimento de apagar definitivamente dos contatos do Face ( e não da memória ), os vestígios da última conquista.
Eu não sei porque os olhos de Angela lacrimejavam tanto, porque na verdade, não era o tempo todo que ela chorava. Na sua dualidade ela também ria, comemorava e extravasava a alegria, por descontrole emocional e falsidade. Ela mentia em meio às meias - verdades. No mundo digital dos dois, só restavam os posts coloridos de amor e de promessas, compartilhados no passado. Ainda lhe faltava coragem para deletar tudo.

Autora: valéria Áureo
In: Entre Mentes e Corações

segunda-feira, 15 de julho de 2019

Trago o amor ( de volta) em 24 horas.


                                                                Ilustração: Internet

           Uma tabuleta rústica improvisava um anúncio audacioso e megalomaníaco: trago o amor (de volta), em 24 horas. Era de uma amplitude magnífica, enfática, pleonástica e dava à cartomante todo o poder concebível no universo da magia. O seu maior predicado era manejar o amor, qualquer que fosse, com dedos ardilosos, de unhas longas e pontiagudas como estiletes, em passes de mágica incrustados  em búzios. Era a senhora dos destinos.
          Não se tratava do trivial cartaz colado nos postes, muros e vielas, em que se anunciava trazer o seu amado “de volta”. Este sim, era de uma objetividade ímpar, ratificada no doloroso vício de linguagem, porque a quiromante sabia de quem se tratava. Trago o seu amor!... Ela, boca vermelha e turbante de pedrarias, limitava-se em atuar no caso específico de um amor atribulado, que não mais se entendia com as palavras do ser amado. - Trago o seu amor; sim, o seu amor! Sua posse e seu domínio! Ela cuidaria, portanto, de capturar, onde estivesse escondida, a pessoa amada, aquele determinado fujão, que tinha surrupiado o coração da moça e nunca mais tinha dado notícias. 
          Calculei de imediato que a maga do afeto universal ( do amor em geral) poderia resgatar todo tipo de amor e manteria em suas mãos poderosas os fluídos da paz aqui na Terra, entre todos os homens de boa vontade: amor dos homens pela humanidade, dos pais pelos filhos, dos maridos pelas esposas, dos entes pelas famílias, dos irmãos pelos irmãos... 
          Minhas ideias se espalhavam levadas pelos ventos da praia e eu ria daquele poder no qual eu jamais acreditaria. Não confiava que o amor pudesse ser trazido à força, à revelia, contrariando a necessidade e a vontade do outro envolvido no afeto. Como se não bastasse ser capaz de resgatar o amor, a cartomante ainda o fazia em 24 horas. Ah! Quanto se pode fazer em 24 horas? E quanto demora passar, quando se espera a volta de alguém! ... Quanto se pode convencer, para o bem e para o mal, não em horas, mas em segundos? Quanto é possível fazer, em nome do amor, ou do ódio? Não importa! Todas as bruxas em seus presságios e artimanhas coloridas e sob jorros de luz, prometem fazer feitiços e amarrações. E, enfeitiçando e amarrando os corações um no outro, como em uma cruz a ser carregada pela vida inteira, o amor nunca mais será o mesmo, porque não é livre. Não sendo livre, já não será mais amor.
Autora Valéria Áureo
In: Entre mentes e Corações

quinta-feira, 11 de julho de 2019

Audrey


          


O caminho que deveria ter sido percorrido seria um... Sempre o mesmo: a tal paisagem da praia, a passagem pela roleta, o banco desconfortável, o mar, a ponte, os barcos.
          Acontece que, de uma hora para outra, ela tentou imaginar a possibilidade de a vida ser vista, não mais pela frente, mas pelo verso e pelo reverso. E assim, deu meia-volta e atravessou o mar com os olhos, mas logo o deixou para trás, abaixando as pálpebras. Devia chegar do outro lado, como sempre fazia ao ir para o trabalho. Ela ia sempre pelo mar. Hoje, estranhamente, a ponte Rio-Niterói era a única certeza de que havia duas margens, duas possibilidades, dois destinos diferentes: o ponto de chegada, o ponto de partida.
          A senhora parada no ponto de ônibus evitou tomar as barcas, mas não saberia explicar a razão. Ela vestia calça jeans, camisa branca desenhando-se para o gelo, debruada de azul, e sapatos de couro de duas cores com salto baixo. Eram confortáveis. Para completar a beleza dos olhos grandes e lábios vermelhos, trazia nos cabelos grisalhos alinhados, um coque a la Audrey. Era bela e chamava atenção com naturalidade. Especialmente hoje, prendia a atenção de um homem, do outro lado da rua, que também desistiu das barcas naquela terça-feira, não se sabe a razão. Ele precisava saber como era a dona do visual despojado e elegante. O homem, observando-a, lançou mão da estratégia de ir e voltar, como se tivesse perdido algo e procurava no chão, mas com olhos espichados para ela.
          Ah! Ela, parada no ponto de ônibus, podendo tomar as barcas, como sempre tinha sido a sua vida, inovando e decidindo pegar o ônibus naquela tarde de terça-feira! Caminhou até a placa que indicava os ponto de espera e ali ficou. Ele se aproximou dela e ficou tão perto que quase parou de respirar. Viu que o rosto dela não era de diva cinematográfica, mas alcançava uma beleza muito maior, porque era real e vivo. Era madura! O que importava, se ele também tinha deixado a juventude para trás? Sorriu! E, pelas rugas dela, dava pra presumir que também devia ter tido seu quinhão de estrela cinematográfica na vida. E foi assim, na tarde de terça-feira, indo para o trabalho, que ele capitulou, entregou os pontos e o coração, porque seu destino, como o de todos, era encontrar o amor. Mesmo que fosse mais tarde, no crepúsculo da vida e longe das viagens diárias das barcas, o amor valia a pena.


Autora: Valéria Áureo
In: Entre Mentes e Corações

sexta-feira, 5 de julho de 2019

Fecho Éclair

 


          

Ela se contorcia, se mutilava, podava suas hastes dolorosamente, como uma flor de fibras estiradas, só para caber dentro do coração dele ( muito justo e apertado), que a impedia de respirar livremente.
          Tudo já não cabia mais dentro de um vestido preto, liso e aderente ao corpo. Desde o dia que se casou ele escolhia o que ela podia vestir, fosse longe dele, ou em sua companhia. Ela se vestia, e ele inspecionava e arrastava lentamente o fecho éclair frio pelas costas brancas e macias dela.
          Ela se encolhia, ficava muda, mutilava seus versos, só para caber dentro da prosódia dele. Era muito justa e requintada, sempre calada, como se não mais soubesse rimar, ou não mais tivesse vocábulos; só os verbos dele eram conjugados, em tempos presentes e futuros e modos autorizados: simples e compostos, sempre harmonizados com os gerúndios e particípios de existir. Agora ele escolhia o que ela poderia pensar e dizer. E, enquanto ela ouvia taciturna as lições de suas poucas possibilidades, ele suspendia suavemente o fecho éclair.
          Ela, de tanto se contorcer, de tanto se encolher em silêncio, rasgava-se, rompia o tecido da seda e apertava ainda mais os laçarotes e as travadas cordas vocais. Respirava com dificuldade costurada naquela prisão de tecidos, cujas chaves ele guardava no bolso do paletó.
          Eis que um dia qualquer ele morreu. A causa e o modo nem importavam muito. O que decorria desse evento é o que aconteceu na vida dela. Ela nunca mais usou vestidos ajustados no corpo pela modista, sempre carregada de alfinetes, linhas e agulhas. Decidiu finalmente pelas roupas leves, levíssimas, sem fechos e sem laços... Mesmo porque ele não estava mais ali para suspender ou abaixar o fecho éclair. 
Autora: Valéria Áureo
In: Entre Mentes e Corações