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quinta-feira, 17 de setembro de 2020

Morro do Pendura Saia

 


Desde que a mãe retomou à casa para criar os filhos, Pingo e a irmã deixaram a casa da avó, indo viver na ladeira do Morro do Pendura Saia, no Rio Comprido. Eram 102 degraus do campinho, do acostamento da ladeira, até a casa grande de Dona Isabel. No quintal havia uma dezena de casas miúdas que ela alugava para gente mais pobre da região. Um cortiço bem organizado. O moleque Pingo vivia na casa da Rua Azevedo Lima, 154, onde podia conviver com pessoas de toda sorte. Não fazia distinção; com a tal idade da inocência nem percebia a diversidade que punha uns aqui, outros ali, na gaveta de índios, brancos, mulatos, amarelos, negros. Para ele era tudo gente, sem lugar no mapa, que tinha uma escadaria para subir e descer várias vezes ao dia. Pingo amava a velha Lurdes, já de sessenta anos, e bem castigada na aparência; ela o cercava de mimos. Mulher rezadeira boa de curar quebrantos. Ao menino deu o nome, prestidigitou o futuro de craque, batizou com nome Pingo, de duas sílabas, porque achava que isto seria de bom agouro, como o nome de Zico, Pelé, Didi, Tostão, e tantos outros. Antes que virasse rapaz já mostrou o mundo feminino, nas suas formas mais claras e expressivas. Sexo tão evidente e natural, das moças subindo a escadaria, sem as roupas de baixo, na nudez dos farrapos e ausência de más intenções; era a pobreza que mostrava os corpos magros, toda vez que elas subiam a escadaria da ladeira. Já que seria um craque, que se acostumasse com as moças e aprendesse a se envolver e se proteger delas.





Nem era mesmo para ele ver, naquela idade, ou para ela apontar para ele aquelas meninas, ou deixá-lo à mercê de tantas pernas que subiam e desciam a ladeira. Ele ainda era menino de dez, doze anos, no máximo, sem esses atrativos do mundo. Era para ele só se ocupar de jogar bola no campinho, lá para baixo de onde morava e ir à escola. Futebol era a sua única chance de mudar a vida e a dela também. Mas a velha Lurdes fazia tudo que o endiabrado pedia. Ela mostrou as meninas, para aliviar a curiosidade do menino a quem carinhosamente chamava “chute de ouro”. E ele se deu por satisfeito com o que viu, convicto de que nasceu macho, assegurando-se de que apreciava mesmo as mulheres.

Havia no meio de tanta gente, uma jovem de certo modo bem atraente. Tinha sido muito bonita, é verdade. Mas agora já mostrava sinais de falta de cuidados... Era outra sorte de gente, a tal Judith, que vivia escondida “provisoriamente” no Pendura Saia. Era o que dizia o empresário “dele”: Fica quietinha aí que a gente vai dar um jeito. Todo mês deposito o suficiente na sua conta, até sair a negociação do passe dele. Tem que ter calma, para não atrapalhar. Judith já vivera em Copacabana, com luxos e popularidade. Transitava livremente no clube dele e ia aos estádios, acompanhando-o bem de perto. Tinha perdido o posto de primeira-dama, trocada no final do campeonato carioca e agora amargava a solidão.  Uma mulher mais jovem tinha ocupado o seu posto no coração dele. Perdida em tantos incompreensíveis dilemas, apontados pelo empresário, uma coisa apenas a preocupa: esperar um filho dele. Isto mesmo, dele... Não podia divulgar seu nome. Era um acordo com os advogados do jogador.

Pela incerteza da moça, esperando ser acolhida no seio da família “dele”, Judith ia cumprindo o que eles exigiam: que guardasse o nome do jogador, longe da especulação dos jornais, das manchetes, para não acabar com a carreira dele e não desvalorizar seu passe. Ainda mais agora, que estava na mira de um time da Espanha. O nome dele ninguém sabia, mas todos sabiam que ela carregava uma barriga que valia ouro. Se ele não se manifestasse, até a criança nascer, era só pedir o DNA e a coisa toda se resolvia. A molecada do futebol sabia da história, mais ou menos, e passou a gritar que ela era uma Maria Chuteira, toda vez que a infeliz passava.  Era como um relâmpago a incendiar o mundo. E no meio de estrondos, palavrões e lágrimas da infeliz surgia o ódio e a depressão no coração de Judith.

- Seu sem-vergonha... Vou picar você a navalha... Quebro a sua perna e não joga mais bola... E partia atrás dos meninos que se espalhavam pelo campinho. Pingo despencava ladeira acima em busca de socorro. Corria querendo alguma ajuda em nome de Deus, que pudesse salvá-lo das mãos armadas da louca.

O tumulto no campinho, a seguir ao caos, tudo silencia no alto do morro. Os gritos e palavrões dela, o choro e o medo dele, a chuva que começa, viram coisa miúda, na extensa escadaria de cento e dois degraus. Lá encima o rosto de Dona Odette, a mãe de Pingo, ilumina a vista do menino, ilumina a visão da mestiça enlouquecida, que vagueia pelas ruelas, como se fosse dia, para ele se salvar.

- Meu Deus, que gritaria é essa? ...

Afogueada, temendo arder em ódio de tamanho desentendimento, a mestiça grita exasperada brandindo no ar a navalha:

- Esse menino endiabrado! ... Esse peste. Toda vez que eu passo, ele e os outros me xingam... Vou cortar ele todinho a navalha... Minha barriga, meu Deus, dói de tanto que corri atrás dele.

Muita coisa fica assim esclarecida no meio daquele alvoroço. Nos dias que ela estava muito bêbada, não se dava conta de que os meninos zombavam dela. Os refinamentos eram possíveis quando estava bêbada: não sabia que a ofendiam, passava pelos meninos sem compreender a algazarra, como se tratasse de uma gentil louvação. Uma saudação cortês era o que sentia e sorridente para eles acenava retribuindo o gesto. Era sim, gentil, quando perdida no álcool e a nada revidava, nem gritava pelas ruas, porque realmente nada compreendia dos palavrões, desde que se soubesse cheia de cachaça. Quando não bebia, modificava-se. Agora lúcida sabia que era ofendida:

- Por isso não preciso de ninguém para me defender. São esses meninos que me xingam... Uns demônios! Judith fica eufórica e chora até ficar rouca. Depois cai exausta, ante a ofensiva da chaleira de água fervente que Dona Odette ameaça jogar sobre seu corpo luzidio, para defender a vida do menino. Exausta de equilibrar a barriga grande sobre as pernas finas e trêmulas; extenuada pelo esforço na escadaria, a louca Judith ainda ameaça, estala a língua, blasfema, cospe no chão a grossa saliva. Finalmente sorri contraditória, enquanto esconde a navalha em arremedos de frouxo soutien, deixando a ameaça de que vai pegar o menino sozinho lá embaixo no campinho de futebol. Na grandiosidade das tormentas e gestos amplos da enlouquecida, o menino sente que nunca mais poderá sair de casa, ou ter paz... Tem sonhos incríveis, abate-se à noite em densos suores e se vê retalhado. Nunca mais voltará ao campinho.

Manhã cedo correndo no outro dia e Dona Odette vai atrás da velha Lurdes benzedeira pedir ajuda. A velha emocionada tenta abraçá-lo, mas o menino está apavorado, depois dos pesadelos com muito sangue e se esquiva para os braços da mãe que conta tudo. Os olhos da velha negra aumentam, se arregalam, as sobrancelhas fazem uma só pergunta:

- Ficou louca, a tal Judith? ... Como se atreve a assustar um menino tão pequeno? ... O meu craque, o meu jogador da seleção?

- Parece que sim, velha. Judith orreu atrás dele com uma navalha...

- A louca bebeu. Com certeza... Melhor ela deixar em paz o meu tesouro e não me apoquentar com suas carraspanas. Ela não teria coragem...

- Agora só bebe de noitinha, ouvi dizer, para conseguir dormir. Esses meninos também não tomam jeito, desafiando uma coitada, uma infeliz daquelas com xingamentos.

- Mas criatura de Deus... É blasfêmia, não é? Meu tesouro não é disso... Nem repete que ele anda na corriola dos “bocas-sujas”. Meu craque não faz isso, não é? ...

O coração de Pingo quase para. A voz pequena de Pingo o defende sem grande convicção e com maiores dúvidas:

- O quê? Eu não xinguei não senhora. Só disse que era puta!

- É pecado, meu menino, voz do demônio, que manda fazer essas coisas ruins.

- Juro que não faço mais...

- Então você se esqueceu dessa vez, não foi? Enganou-se... Não vai fazer mais... O que você falou é nome feio. É coisa do mal.

No vazio do coração amedrontado, no tremor dos dentes, a língua se enrolava e se perdia:

- É tudo verdade, ajudei a gritar que era filha da puta. Eu juro. Não faço mais. Eu não sabia o que era...

      - Vai embora, Dona Odette. E você, meu tesouro, vai com sua mãe... Vou fazer um banho de proteção para se resguardar de todo o mal. Reza bastante, pede perdão e para de atormentar a pobre da Judith. É uma desgraçada, uma infeliz com um filho na barriga, mas vou resolver isso de uma vez. Trate de agir como um homem de verdade!

Odette tratou de se acalmar... Ela defendendo a cria. A velha Lurdes fazendo exorcismos, persignando-se, meio bruxa, meio feiticeira, mas sempre aliada de Deus, pedia que nada atrapalhasse a trajetória do seu campeão, nascido e abençoado para vencer. Pingo saiu apressado prometendo nunca mais ofender a desgraçada... Nem sabia o que era palavrão; era só puta o que dizia... Depois a velha Lurdes suaviza:

- Esquece! Nem fala mais nisso, melhor mesmo deixar de pensar no acontecido e não perder o sono. Abençoo-te em nome de Deus! Agora vai em paz que eu vou resolver. Ela não vai ter coragem de mexer com você. Pode dormir tranquilo.

Dona Odette voltou bem mais calma para casa, arrastando o pequeno pelas mãos...

-Viu só meu filho? É pra isso que tu tens mãe.

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Volta o menino ao ensolarado das ruas; começa seu trabalho de ir tranquilo para a escola e na volta jogar futebol. Vai ao campinho, na base da ladeia do Morro do Pendura Saia. É ali que ele sonha o seu futuro: jogar no Vasco da Gama e depois na Seleção.

Mais um dia em torno do campinho. Alguém grita: lá vem a Judith Navalhada... Maluca! Olá maluca! O pequeno Pingo não entoa mais cantoria nenhuma contra ela; arrependeu-se. Pede para os outros moleques a deixarem em paz. Mas o mundo é tão grande que ela não escuta, porque está bêbada. O alarido parece-lhe uma saudação calorosa de meninos a cortejar a moça magra com risos e cantilenas agradáveis. Ela acena feliz para os meninos. Gosta de todos que a cumprimentam e acenam efusivos. Não sabe distinguir palavras e palavrões.

De noite, hora da sopa na igreja, a pobre Judith encara a benzedeira Lurdes:

- Para com isso, Judith. Já mandei não assustar os meninos. Precisa rezar...

- Sô “mendinga” de rua, mas num minto. Ele me xingou. “Mendinga” de rua. Eu sei que sou, mas não filha da puta, nem puta, que meus “fio” tudo tem pai.

- Filha, faz favor, pega um prato e vai pra fila. Esquece essa história que não tem utilidade. Nunca mais ameace meu menino! ...

Uma ardência sanguínea parece rasgar sua língua ao meio diante do desafio da benzedeira, guardiã do terreiro; intensos vermelhos tingem os olhos que só choram. Na alma de Judith só dor e revolta de ser injustiçada:

- Faço estripulias, vou logo avisando, pico ele todinho na navalha, que não sou filha da puta, nem puta, que isso me dói “nas entranha”...

- Está vendo, minha filha? Não disse que é o demônio? Pede perdão, criatura. Reza. Credo, “tu ta loca!”.

- Por meu filho sagrado. É verdade. Quebro a perna dele. Nunca mais ele faz um gol...

     - Pois trate de ficar longe do meu tesouro, que ele nunca mais vai lhe ofender.

       Os dias seguintes foram um crescente de luta para Judith, ora bêbada e calma, satisfeita com a "saudação" dos meninos; ora sóbria e esbaforida com a sua humilhação, abandonada pelo jogador, pelo empresário, por todos, sofrendo de cansaço e escárnio até que se abateu na beira do campinho de futebol. Depois foi agarrada, socada e chutada por outros mendigos. De repente, sangrou. E tanto sangrou, que na espera da ambulância perdeu os sentidos e um filho que tinha dentro da barriga... O filho dele, o artilheiro, acabou ali mesmo com toda sua esperança!

É uma história triste. Não tem mais filho nenhum; não tem ninguém, nem família. Só os meninos do campinho de futebol se dirigiam a ela, acenando e aquecendo-lhe o coração, quando a pobre coitada estava bêbada; sóbria era só amargura.

- Judith Navalhada, filha da puta! ... Entoavam todos os dias, os meninos da Ladeira do Morro do Pendura Saia, lhe dando boa tarde e ela bêbada acenava feliz retribuindo a cortesia.