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domingo, 16 de agosto de 2020

Narrativa das Improbabilidades


Ilustração: Internet


Quando a infância era a sua única razão de ser, a criançada já entendia o pai com um simples olhar. Ele baixava os óculos até a ponta do nariz e pronto. Tudo esclarecido e nem mais um som.
Os distúrbios que pudessem existir eram folhas corrigidas do livro de doutrinação que o vento levava rapidamente e dava sabedoria às variadas idades. Dava compreensão. Dava perspicácia, sabedoria e mais discernimento. E ai de quem não compreendesse suas mensagens, pois a vida não dava chance para os tolos.
Poucas palavras, gestos e mímica formavam um código secreto entre eles. A casa poderia até ser um campo concentrado de vontades de guerra, embates, egos, se não houvesse um líder. Mas o líder não deixava que isso acontecesse. Assim seus oito soldados marchavam em harmonia com outras crianças refreadas em casa e nos anos de escola. Tudo ia bem...
O pai falava aos filhos com os olhos e até com silêncios. Palavras deviam ser decifradas com inteligência e rapidez de raciocínio...
E assim se deu a narrativa das improbabilidades: ia ele com a filha adolescente no ônibus até Barbacena, onde a menina estudava; linda, cabelos longos, olhos doces e convicções de menina esperta, mas que ainda tinha que ser protegida pelo pai. No ônibus ela sentou-se no banco da frente e atrás se sentou o pai. Eram os únicos lugares vazios. Do lado dela o banco estava ocupado por um rapaz que logo se engraçou, aprumando-se ao vê-la. Empertigou-se ardiloso e achegou-se aos longos cabelos dela. Animou-se em uma possibilidade de aventura. A cada curva, mais e mais ele se lançava sobre ela. Ela, cada vez mais espremida em seu assento, recolhida em seu temor, sem poder se desvencilhar,  porque não sabia reagir.
O pai, que a tudo vigiava, sabia que não poderia mais agir como sempre agira em sua juventude: um soco nos queixos do malandro e pronto. Mas agora a questão exigia prudência e sabedoria. Precisava esperar o momento certo.
Foi então que o pai exclamou: 
- Minha fia, como estão te tratando lá no leprosário? A frase estaparfúdia era o código para a filha ativar sua imaginação e acompanhar o raciocínio do pai. A menina, atenta e perspicaz, percebendo a intenção do pai respondeu: 
- Estão me tratando bem, pai. Não se preocupe!
- E as feridinhas no seu corpo, já secaram?
- Não, pai, ainda não! ... Tem muitas nos ombros! Quer ver?

Pois nem foi preciso mais nenhuma palavra. O rapaz, que até então estava com a cabeça sobre os ombros da menina, deu um salto; desvencilhou-se pálido, tremendo, apavorado. Deu sinal para o motorista e saltou no meio da estrada. Nunca mais se soube dele.

É isso que acontecia com quem se engraçava com as filhas do meu velho.


Autora: Valéria Áureo
(In: Conjugando o Amor Líquido)