Ilustração: Internet
Quando a infância era a sua única razão de ser, a
criançada já entendia o pai com um simples olhar. Ele baixava os óculos até a
ponta do nariz e pronto. Tudo esclarecido e nem mais um som.
Os distúrbios que pudessem existir eram folhas
corrigidas do livro de doutrinação que o vento levava rapidamente e dava
sabedoria às variadas idades. Dava compreensão. Dava perspicácia, sabedoria e
mais discernimento. E ai de quem não compreendesse suas mensagens, pois a vida
não dava chance para os tolos.
Poucas palavras, gestos e mímica formavam um código
secreto entre eles. A casa poderia até ser um campo concentrado de vontades de
guerra, embates, egos, se não houvesse um líder. Mas o líder não deixava que
isso acontecesse. Assim seus oito soldados marchavam em harmonia com outras
crianças refreadas em casa e nos anos de escola. Tudo ia bem...
O pai falava aos filhos com os olhos e até com
silêncios. Palavras deviam ser decifradas com inteligência e rapidez de
raciocínio...
E assim se deu a narrativa das improbabilidades: ia
ele com a filha adolescente no ônibus até Barbacena, onde a menina estudava;
linda, cabelos longos, olhos doces e convicções de menina esperta, mas que
ainda tinha que ser protegida pelo pai. No ônibus ela sentou-se no banco da
frente e atrás se sentou o pai. Eram os únicos lugares vazios. Do lado dela o
banco estava ocupado por um rapaz que logo se engraçou, aprumando-se ao vê-la.
Empertigou-se ardiloso e achegou-se aos longos cabelos dela. Animou-se em uma
possibilidade de aventura. A cada curva, mais e mais ele se lançava sobre ela.
Ela, cada vez mais espremida em seu assento, recolhida em seu temor, sem poder
se desvencilhar, porque não sabia reagir.
O pai, que a tudo vigiava, sabia que não poderia mais
agir como sempre agira em sua juventude: um soco nos queixos do malandro e
pronto. Mas agora a questão exigia prudência e sabedoria. Precisava esperar o
momento certo.
Foi então que o pai exclamou:
- Minha fia, como estão te tratando lá no
leprosário? A frase
estaparfúdia era o código para a filha ativar sua imaginação e acompanhar o
raciocínio do pai. A menina,
atenta e perspicaz, percebendo a intenção do pai respondeu:
- Estão me tratando bem, pai. Não se preocupe!
- E as feridinhas no seu corpo, já secaram?
- Não, pai, ainda não! ... Tem muitas nos ombros!
Quer ver?
Pois nem foi preciso mais nenhuma palavra. O rapaz,
que até então estava com a cabeça sobre os ombros da menina, deu um salto;
desvencilhou-se pálido, tremendo, apavorado. Deu sinal para o motorista e
saltou no meio da estrada. Nunca mais se soube dele.
É isso que acontecia com quem se engraçava com as
filhas do meu velho.
Autora: Valéria Áureo
(In: Conjugando o Amor Líquido)