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segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Pés no ar, cabeça nas nuvens



                                               Ilustração: Internet


Uma vez a menina ficou pendurada na janela, não se sabe como. Não era o jeito habitual de apoiar-se nos cotovelos, sobre o peitoril da janela, sustentando a cabeça pacientemente, absorvendo a vida com calma. Daquela vez tinha os pés no parapeito e as mãos estendidas para cima, seguravam a vidraça erguida.

 A menina estava pendurada na janela da casa 87 da Rua Domingos Inácio. Pés no ar, o pequeno corpo balançando e as duas mãos presas na vidraça. O tempo passou, mas... Ainda agora, está sustentada na eternidade da janela, cujos vidros são finos e originais. A janela é a mesma, dividida em quadrados que se sustentam nos esquadros por duas borboletas laterais de metal. Sei que ainda está pendurada pelas pontas dos dedos, pelas mãos, pelas unhas. Naquele dia pouco podia, erguida nos braços, naquela imensidão vazia e os pés no ar que anunciavam uma inevitável queda. Os braços finos sustentavam um peso que quase não podiam conter.  Provavelmente, desafiava a gravidade, ou apenas pressentia os voos do coração. O tombo era provável e a altura era grande para a fragilidade do corpo. Não restava a ela mais que chorar e gritar por ajuda, sem poder descer sozinha... Sempre gostou de ficar ali. Lá ela via uma aranha papa-mosca, que parecia ser a mesma que a acompanhava, adiante pela vida, naquela visita diária, na agradável visão da rua. Ficava ali muito tempo, porque o tempo da criança e da aranha parece demorar mais a passar. Ela olhava a aranha, olhava a rua, olhava o sol, olhava a borboleta, olhava o mundo...

A menina chorou por tempo que nem se lembra. Mesmo com medo, podia ver que uma correição de formigas tinha destino certo naquela janela. Era uma procissão que seguia a estreita trilha das ínfimas “lavadeiras” até o buraco onde se encaixava o trinco. Elas seguiam, umas atrás das outras, carregando pequenos resíduos de miolo de pão. Também a janela tinha seu destino: mostrar-se, abrir-se, fechar-se à noite, para ela, enquanto não crescesse. Na janela, extraordinariamente degrau, improvisada escada, ela via a rua pelo alto, como se tivesse jeito de gente grande e achava a visão bonita. O novo ângulo apontava detalhes que ainda não tinha percebido. Via de bem perto como era a vidraça, aberta para o mundo, e olhava para dentro de si, compreendendo o medo de cair, a leveza de ter a cabeça no ar, pensando nas pessoas que via passar na rua. Via, enquanto o coração voava perdido nas nuvens, o caminho das formigas, a aranha assídua, o reflexo colorido do sol no alto dos vidros, que nunca tinha visto de perto, provocando arco-íris.

A menina que eu fui sempre teve o coração atento. Via as pessoas por dentro, por fora, em volta do riso delas. Gostava de ouvir o silêncio delas, ver seus retratos, seus rostos congelados nos flashes... Em volta da cabeça delas vislumbrava suas ideias e sentimentos. Sob os chapéus dos que andavam pela rua, inventava histórias. Via a tristeza disfarçada num pedaço de fala, via a fugaz sinceridade de uma conversa e um guarda-chuva pendurado cautelosamente no braço. Via um homem carregando uma caixinha de fogo dentro do bolso e um cigarro de palha descansando na orelha... Via quem passava de cabeça baixa, camuflando um silêncio na boca e na alma. Via as sapatilhas cor- de- rosa, nos pés que brincavam descalços. Via tantos outros sentimentos que costumam habitar o homem; ela se comovia mais, bem mais com as dores alheias, do que com o próprio medo.

 Via o vermelho da parede descascada da casa e um buraco na calçada, logo ali na junção da entrada d’água, onde o cano deixava vazar um esguicho fresco e fino, desenhando no chão um longo, estreito e imorredouro rio. Via a poça e os olhos dentro dela, dentro das lágrimas. Se as pessoas achavam que aquele eterno jato escorrendo indefinidamente enfeava a rua, era puro engano. Era uma chuva artificial que rolava, como se recuperasse o leito da terra ali disfarçado, irrigando sementes invisíveis, fazendo nascer capim entre os paralelepípedos. Sob os calçamentos, sob as pedras, sob os encanamentos, havia senão a terra, o rio, a paisagem inicial, sem a interferência humana. Assim, uma água que vazava infinitamente na minha porta, era um rio com barcos embutidos... Era a particularidade da calçada, com uma atmosfera de riacho, que ela nunca deixou de apreciar. O coração margeava uma planície escondida na calçada da minha casa, desenhando um lago.

Do alto da janela via os telhados e as calhas e o céu e as nuvens interrompidas pela arquitetura. Se não tivesse telhado, pensava, seria só um azul calmo sobre nossas cabeças. E mesmo que houvesse chuvas, seria um provável princípio de férias de dezembro. Sem telhados, pensava, teríamos só estrelas sobre nossas cabeças. Estrelas eram bem mais que telhas... Do alto, via a distância do chão, a distância da maturidade, a distância da humanidade. A altura da janela era o tempo.  A menina via e temia perder-se na visão do lado de fora, temia perder sua janela para a compreensão e a morte da inocência. Temia perder seu próprio rio mágico sob seus pés soltos, erguidos na imensidão do ar.

A menina viu o olhar das pessoas que passaram naquela tarde de um passado remoto. Viu em torno da alegria delas, viu dentro do silêncio delas... Viu a moça carregando um coração bonito nos lábios de batom vermelho e cheiro de flor. Viu aparecer um moço que sorriu para ela, dando-lhe um abraço, a bênção, porque era seu padrinho Zeca Fernandes; deu uma nota para comprar balas para si e seus irmãos e assim estancar as lágrimas com doces. Viu o padrinho ainda tão moço resgatá-la das alturas, brincando de avião e colocá-la no chão, onde pudesse se sentir segura e andar feito criança. Do alto da janela, sob a transparência das vidraças, a menina vislumbrou-se refletida na poça d’água de sua porta, mais velha que menina. Pôde compreender-se, olhando para cada um que passava distanciada no tempo e tão próxima da vida. A menina descobriu a chave da poesia, das ilusões, dos sonhos. A menina aprendeu a crescer com felicidade, sonhando, sonhando, sonhando. Sempre prestando atenção em portas e janelas. Sempre prestando atenção em pessoas, observando do alto, com pés no ar e cabeça nas nuvens.

 




Valéria Áureo  

 27/05/2003
                                         Ilustração:Internet