Ilustração: Internet
Esse é um fato verídico, ou quase, se não lhe falha a
memória. A súbita narrativa desse senhor advém de uma provocação, de uma dúvida
inesperada do jovem sobrinho: - o senhor já se apaixonou? ...
Ele é um homem com a mente senil, dotado de lembranças
turvas, quase apagadas. Ao menos é o que pensam os familiares. Eles acreditam
que aquela confusão mental constante é irreversível. Quando fica silencioso é
até um alívio para os que não tem paciência de ouvir. Nem mesmo o médico pode
assegurar diagnóstico definitivo sobre sua memória. Os mais próximos alegam que
não há em nenhum ponto de sua fala, resquícios das experiências vividas e reais
de sua juventude. Alegam que ele inventa, e inventa tudo. Tudo mentira! Não
sabe o que diz! No entanto nada de definitivo evidencia o total desterro de
suas recordações. Há momentos de pura lucidez. A narração dessa manhã de origem
inesperada é naturalmente lenta e compassada, pois com o passar dos anos ele
extenua o fôlego e perde toda a sua diligência na desenvoltura de falar. Hoje
deu-se de saudades da costureira, da linda modista de Laranjeiras. Aquela dos
olhos azuis, pele morena, boca vermelha... A mocinha vivia em um sobrado azul e
branco, que ele sempre visitava. Além de ser próximo de sua casa, havia motivos
costurados em um outro interesse mais pessoal - flertar. Sim, a mocinha era
aquela que espetava o seu coração com alfinetes e agulhas de pontas finas e que
cerzia o tecido de sua alma com pontinhos bem apertados, fazendo com que ele
sentisse uma dor miúda e constante. Onde estaria ela, agora, a minha
costureirinha?
O estranho nesse enredo de saudade abrupta é que em nenhum
momento lhe falta decoro em revelar mais do que a elegância de um homem
permite, mesmo passado na idade. Jamais revela até que ponto na costura ele foi
com a modista. Será que ficou apenas no tirar medidas? No desfiar o tecido
juntos? No fazer o desenho da camisa? No decidir-se pelo molde? Ao engajar-se
no relato de suas lembranças, instigado pelo sobrinho, em momento algum foi
interrompido, pois uma abrupta intervenção, uma pergunta fora de hora, uma
dúvida a ser esclarecida faria com que as trilhas de sua mente se
entrelaçassem, pondo em risco a retidão de suas recordações. Basta saber que a
modista de sua memória é a moreninha do sobrado azul e branco e que, por isso,
decidiu-se pelo terno azul e pela camisa branca.
O motivo de todo esse desvelo é para assegurar a integridade
do velho saudosista. Uma pequena interferência, uma pergunta acarretaria um
estrago em sua narrativa e descarrilaria a locomotiva dos trilhos de suas
memórias, levando para longe a passageira, modista de sua lembrança. Basta
saber que a costureira que habita a sua memória o acordou hoje de um sono
denso, com espetadas doces e miúdas de alfinetes e agulhas, para que ele a
distinguisse entre tantos pontos e tecidos. As ideias e lembranças dançam
dentro dele sem a necessidade de mais costuras. É lá que ele vive - no atual
momento - de sua narrativa, alinhavado, costurado, cercado de linhas, botões,
fechos, texturas e sorrisos da costureira. Querer saber além disso, será
invasão de privacidade.
Autora: Valéria Áureo
In: Entre mentes e Corações