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sábado, 25 de janeiro de 2020

Invasão de Privacidade


                                   Ilustração: Internet

  
Esse é um fato verídico, ou quase, se não lhe falha a memória. A súbita narrativa desse senhor advém de uma provocação, de uma dúvida inesperada do jovem sobrinho: - o senhor já se apaixonou? ...
Ele é um homem com a mente senil, dotado de lembranças turvas, quase apagadas. Ao menos é o que pensam os familiares. Eles acreditam que aquela confusão mental constante é irreversível. Quando fica silencioso é até um alívio para os que não tem paciência de ouvir. Nem mesmo o médico pode assegurar diagnóstico definitivo sobre sua memória. Os mais próximos alegam que não há em nenhum ponto de sua fala, resquícios das experiências vividas e reais de sua juventude. Alegam que ele inventa, e inventa tudo. Tudo mentira! Não sabe o que diz! No entanto nada de definitivo evidencia o total desterro de suas recordações. Há momentos de pura lucidez. A narração dessa manhã de origem inesperada é naturalmente lenta e compassada, pois com o passar dos anos ele extenua o fôlego e perde toda a sua diligência na desenvoltura de falar. Hoje deu-se de saudades da costureira, da linda modista de Laranjeiras. Aquela dos olhos azuis, pele morena, boca vermelha... A mocinha vivia em um sobrado azul e branco, que ele sempre visitava. Além de ser próximo de sua casa, havia motivos costurados em um outro interesse mais pessoal - flertar. Sim, a mocinha era aquela que espetava o seu coração com alfinetes e agulhas de pontas finas e que cerzia o tecido de sua alma com pontinhos bem apertados, fazendo com que ele sentisse uma dor miúda e constante. Onde estaria ela, agora, a minha costureirinha?
O estranho nesse enredo de saudade abrupta é que em nenhum momento lhe falta decoro em revelar mais do que a elegância de um homem permite, mesmo passado na idade. Jamais revela até que ponto na costura ele foi com a modista. Será que ficou apenas no tirar medidas? No desfiar o tecido juntos? No fazer o desenho da camisa? No decidir-se pelo molde? Ao engajar-se no relato de suas lembranças, instigado pelo sobrinho, em momento algum foi interrompido, pois uma abrupta intervenção, uma pergunta fora de hora, uma dúvida a ser esclarecida faria com que as trilhas de sua mente se entrelaçassem, pondo em risco a retidão de suas recordações. Basta saber que a modista de sua memória é a moreninha do sobrado azul e branco e que, por isso, decidiu-se pelo terno azul e pela camisa branca.

O motivo de todo esse desvelo é para assegurar a integridade do velho saudosista. Uma pequena interferência, uma pergunta acarretaria um estrago em sua narrativa e descarrilaria a locomotiva dos trilhos de suas memórias, levando para longe a passageira, modista de sua lembrança. Basta saber que a costureira que habita a sua memória o acordou hoje de um sono denso, com espetadas doces e miúdas de alfinetes e agulhas, para que ele a distinguisse entre tantos pontos e tecidos. As ideias e lembranças dançam dentro dele sem a necessidade de mais costuras. É lá que ele vive - no atual momento - de sua narrativa, alinhavado, costurado, cercado de linhas, botões, fechos, texturas e sorrisos da costureira. Querer saber além disso, será invasão de privacidade.

Autora: Valéria Áureo
In: Entre mentes e Corações