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sábado, 9 de novembro de 2013

Mais além...

                                                        Ilustração: Internet


                   Sorria!... Insistia o fotógrafo, buscando captar uma possível felicidade, um breve instante de beleza, perseguindo um desejo de perfeição.
               - Como é mesmo que acabaria aquela história tão triste? Imaginei um momento de beleza repartido entre lágrimas... No mais doloroso instante, ainda se pode vislumbrar o sublime. No instante quase imperceptível em que o homem completa a obra divina e se resume absolutamente em espírito. Desfaz-se do fardo e alça voo, em direção a Deus. Torna-se pleno. Lágrimas costumam embaçar nossos olhos e nos impedem de ver a magnitude do adeus, que encaminha à eternidade. É neste instante tênue, enquanto choramos que a obra de arte se consuma.
                 
          A busca pelo belo é um desejo inconsciente. A beleza nos dá prazer, nos traz felicidade, mesmo nos momentos e lugares mais inesperados. Até mesmo nos tempos de dor podemos vislumbra-la. Absurdo se eu dissesse que poderia encontra-la em toda parte e a todo instante?
                   William Shakespeare disse brilhantemente: “Que obra de arte é o homem!”, e uma obra de arte nada mais é do que a manifestação da beleza, que está nas pessoas, em quadros, em esculturas, em textos, em momentos, na vida.
Quando falamos em beleza, nos referimos à estética, à disposição harmônica e racional dos objetos, das palavras, dos gestos, dos sons e das pessoas. É a ordenação das partes de um todo, é a harmonia do conjunto. É necessário que tudo que está a nossa volta tenha estética e consonância para ser agradável e motivar nossos melhores sentimentos e reações. Portanto, a estética por si só é vazia, se não tem conteúdo. Não basta uma poesia ser escrita num lindo papel, com uma linda imagem; ela tem que ter uma mensagem. Não basta um grupo de amigos ser belo; ele deve ser unido e um amparar o outro. Essa é a beleza da nossa existência. O Belo e o Bem como propósitos da própria existência. Por isto Wanda foi bela.
               A vida é a maior manifestação estética, porém nós temos que saber como recheá-la com sonhos e boas causas. Isso demandará luta, causará choro e angústia, mas o resultado final será alegria e beleza. Entretanto, alegria e beleza não podem pertencer apenas a uma pessoa, mas devem ter destinação universal. Elas devem ser divididas com outros. Ao compartilhar boas ideias e dividir momentos alegres, somaremos e multiplicaremos a beleza na vida das pessoas. Por falar em momentos escolho um, bem peculiar.
             Ah... Sim, uma mulher que chamava atenção, por ser tão discreta; não fosse ela assim, de olhos azuis profundos de céu, seus cabelos branquíssimos e a alvura de sua pele, não se teria notado o imprevisível encantamento de quem passara a vida sem se fazer notar. Exatamente por isto se avultava. Ao contrário do que se podia prever naquele lugar, ela sobressaía angelical, como se não fosse se avistar com algum sofrimento: um invisível e intangível colar de pérolas parecia adornar o seu pescoço, dando-lhe nobreza peculiar pela vida afora. Era simples, mas tinha envergadura, como se andasse constantemente pronta para sair. Apesar disto, nunca saía, mas sempre estivera preparada para uma grande celebração. Ali, naquele lugar, comportava-se como se não se envolvesse muito com a própria dor. Sempre silenciosa, levava ao pé da letra a sobriedade como propósito de vida. Melhor para ela, melhor para todos... Estranhamente num hospital, onde é natural encontrar a dor e a tristeza, andou desafiando a obviedade do desconforto que tudo pudesse lhe causar. A alma estava vestida com elegância, para uma comemoração definitiva. Ela afastava a paciente de si mesma, projetando o espírito, para que os filhos pudessem ver muito mais do que se costuma ver naquele lugar... De certa forma ela comemorava a vida, apesar de tudo. Assim, no absurdo instante da inesperada partida, ela harmoniosamente aparecia cantando, para que se pudesse falar mais, além da sua dor... Quantas vezes ouvira esta frase: Sorria!
                   - Sorria!... Dizia o fotógrafo para a moça chorando diante de câmera e que relutava diante da adversidade. Timidamente se ajeitou no banquinho ao ar livre querendo se instalar melhor, ajustar os pés junto à cadeira, enquanto o retratista insistia em que ela tivesse melhor semblante. Era uma foto de recordação. Mas não havia para que rir, pensava, se o que a trazia ali era a intenção de ter uma fotografia de adeus, porque carta não haveria... Nem mesmo para dizer que ainda viveria e que quase morria de saudades, desde o dia em que ela tinha ido embora. Não havia letras que pudessem sair de sua cabeça capaz de esboçar as lágrimas que seu coração confinado despejava à noite. Pena que ela não soubesse escrever certas coisas, certos sentimentos que vinha armazenando, desde a infância, até o dia que perdera a mãe de vez. Ela tinha achado infinito o caminho até o hospital, para onde seus pés se dirigiram, sem que ela mesma pudesse rumar ao final daquela tarde. Quem sabe ali, um remédio para o seu mal... Uma tarde que nunca mais teria fim dentro do seu peito.
                   Sorria!... Lembrou-se do que dizia o fotógrafo, buscando captar uma possível felicidade, desde que deixasse para mais tarde, na escuridão da noite, aquela tristeza visível nos olhos. Melhor registrar um brilho, uma luz que explicasse a inutilidade da dor. Foi assim que, afinal, relembrou a figura surpreendente da mulher e seu imaginário colar de pérolas, agora desfeito, poeticamente instalada em lugar estranho, ao que habitara durante toda sua vida. Então sorriu da própria grande mágoa e pôde voltar para casa, onde deverá aprender a se refazer da dor e da saudade...
                   - Mas como é mesmo que aquela história acabaria? Seria um bom desfecho a moça ir pra casa deixando guardada a imagem em preto e branco, envolvida na recente nostalgia? Melhor seria um imprevisível fim...
                   Melhor terminar assim: até que, ao final de tudo isso, todos puderam se desviar do próprio sofrimento, ao avistar a mulher do hospital vestida para celebrar a vida, usando colar de pérolas invisíveis, sendo acolhida por Deus.               
                 Sorria!... Insistia o fotógrafo, buscando captar uma possível felicidade, um breve instante de beleza, perseguindo um desejo de perfeição.


             Valéria Áureo 
             25/03/2011