Sorria!...
Insistia o fotógrafo, buscando captar uma possível felicidade, um breve
instante de beleza, perseguindo um desejo de perfeição.
- Como é mesmo
que acabaria aquela história tão triste? Imaginei um momento de beleza
repartido entre lágrimas... No mais doloroso instante, ainda se pode vislumbrar
o sublime. No instante quase imperceptível em que o homem completa a obra
divina e se resume absolutamente em espírito. Desfaz-se do fardo e alça voo, em
direção a Deus. Torna-se pleno. Lágrimas costumam embaçar nossos olhos e nos
impedem de ver a magnitude do adeus, que encaminha à eternidade. É neste
instante tênue, enquanto choramos que a obra de arte se consuma.
A busca pelo belo é um desejo inconsciente. A beleza nos dá prazer, nos traz felicidade, mesmo nos momentos e lugares mais inesperados. Até mesmo nos tempos de dor podemos vislumbra-la. Absurdo se eu dissesse que poderia encontra-la em toda parte e a todo instante?
William Shakespeare disse
brilhantemente: “Que obra de arte é o homem!”, e uma obra de arte nada mais é
do que a manifestação da beleza, que está nas pessoas, em quadros, em
esculturas, em textos, em momentos, na vida.
Quando falamos em
beleza, nos referimos à estética, à disposição harmônica e racional dos
objetos, das palavras, dos gestos, dos sons e das pessoas. É a ordenação das
partes de um todo, é a harmonia do conjunto. É necessário que tudo que está a
nossa volta tenha estética e consonância para ser agradável e motivar nossos
melhores sentimentos e reações. Portanto, a estética por si só é vazia, se não
tem conteúdo. Não basta uma poesia ser escrita num lindo papel, com uma linda
imagem; ela tem que ter uma mensagem. Não basta um grupo de amigos ser belo;
ele deve ser unido e um amparar o outro. Essa é a beleza da nossa existência. O
Belo e o Bem como propósitos da própria existência. Por isto Wanda foi bela.
A vida é a maior manifestação estética,
porém nós temos que saber como recheá-la com sonhos e boas causas. Isso
demandará luta, causará choro e angústia, mas o resultado final será alegria e
beleza. Entretanto, alegria e beleza não podem pertencer apenas a uma pessoa,
mas devem ter destinação universal. Elas devem ser divididas com outros. Ao
compartilhar boas ideias e dividir momentos alegres, somaremos e
multiplicaremos a beleza na vida das pessoas. Por falar em momentos escolho um,
bem peculiar.
Ah... Sim, uma
mulher que chamava atenção, por ser tão discreta; não fosse ela assim, de olhos
azuis profundos de céu, seus cabelos branquíssimos e a alvura de sua pele, não
se teria notado o imprevisível encantamento de quem passara a vida sem se fazer
notar. Exatamente por isto se avultava. Ao contrário do que se podia prever
naquele lugar, ela sobressaía angelical, como se não fosse se avistar com
algum sofrimento: um invisível e intangível colar de pérolas parecia adornar o seu pescoço,
dando-lhe nobreza peculiar pela vida afora. Era simples, mas tinha envergadura,
como se andasse constantemente pronta para sair. Apesar disto, nunca saía, mas
sempre estivera preparada para uma grande celebração. Ali, naquele lugar,
comportava-se como se não se envolvesse muito com a própria dor. Sempre
silenciosa, levava ao pé da letra a sobriedade como propósito de vida. Melhor
para ela, melhor para todos... Estranhamente num hospital, onde é natural
encontrar a dor e a tristeza, andou desafiando a obviedade do desconforto que
tudo pudesse lhe causar. A alma estava vestida com elegância, para uma
comemoração definitiva. Ela afastava a paciente de si mesma, projetando o
espírito, para que os filhos pudessem ver muito mais do que se costuma ver
naquele lugar... De certa forma ela comemorava a vida, apesar de tudo. Assim,
no absurdo instante da inesperada partida, ela harmoniosamente aparecia
cantando, para que se pudesse falar mais, além da sua dor... Quantas vezes
ouvira esta frase: Sorria!
- Sorria!...
Dizia o fotógrafo para a moça chorando diante de câmera e que relutava diante
da adversidade. Timidamente se ajeitou no banquinho ao ar livre querendo se
instalar melhor, ajustar os pés junto à cadeira, enquanto o retratista insistia
em que ela tivesse melhor semblante. Era uma foto de recordação. Mas não havia
para que rir, pensava, se o que a trazia ali era a intenção de ter uma
fotografia de adeus, porque carta não haveria... Nem mesmo para dizer que ainda
viveria e que quase morria de saudades, desde o dia em que ela tinha ido
embora. Não havia letras que pudessem sair de sua cabeça capaz de esboçar as
lágrimas que seu coração confinado despejava à noite. Pena que ela não soubesse
escrever certas coisas, certos sentimentos que vinha armazenando, desde a
infância, até o dia que perdera a mãe de vez. Ela tinha achado infinito o
caminho até o hospital, para onde seus pés se dirigiram, sem que ela mesma
pudesse rumar ao final daquela tarde. Quem sabe ali, um remédio para o seu
mal... Uma tarde que nunca mais teria fim dentro do seu peito.
Sorria!... Lembrou-se
do que dizia o fotógrafo, buscando captar uma possível felicidade, desde que
deixasse para mais tarde, na escuridão da noite, aquela tristeza visível nos
olhos. Melhor registrar um brilho, uma luz que explicasse a inutilidade da dor.
Foi assim que, afinal, relembrou a figura surpreendente da mulher e seu imaginário colar
de pérolas, agora desfeito, poeticamente instalada em lugar estranho, ao que habitara durante
toda sua vida. Então sorriu da própria grande mágoa e pôde voltar para casa,
onde deverá aprender a se refazer da dor e da saudade...
- Mas como é
mesmo que aquela história acabaria? Seria um bom desfecho a moça ir pra casa
deixando guardada a imagem em preto e branco, envolvida na recente nostalgia?
Melhor seria um imprevisível fim...
Melhor terminar assim: até que, ao
final de tudo isso, todos puderam se desviar do próprio sofrimento, ao avistar
a mulher do hospital vestida para celebrar a vida, usando colar de pérolas
invisíveis, sendo acolhida por Deus.
Sorria!... Insistia o fotógrafo,
buscando captar uma possível felicidade, um breve instante de beleza,
perseguindo um desejo de perfeição.
Valéria Áureo
25/03/2011