Ilustração: Internet
A vida tem fragmentos de coisas comuns, como poeiras que repousam sobre um
móvel. Aqui e em qualquer outro lugar, tudo parece igual. Imóvel parece que
está o solitário homem na sala... Sentado está o velho diante da
televisão. Ora... Tudo é sempre possível quando nos lembramos de sonhar, ou se
apenas respiramos. E, por ironia, parece que nos lembramos de sonhar, quando
não mais dispomos de tempo, ou temos poucas chances de viver com prazer.
Há os que nunca imaginam outras possibilidades, senão a de continuarem sentados
na cadeira da sala, respirando...
O velho, sempre sozinho na sala, se desinteressa do que vê na televisão. Onde
estão os irmãos, os filhos, a esposa, os netos? Chama por alguém e ninguém
responde. Procura no bolso a bula do remédio para hipertensão, e do spray
para falta de ar; lê com seus óculos bifocais que escorregam na deselegante e
enrugada curva do nariz. As letras minúsculas no papel escondem incontáveis
males; afinal, tantos nomes difíceis, tantos efeitos colaterais. Melhor seria
não ler... Se não sabe, não sofre.
...Advertências peremptórias: não tome remédios sem o conhecimento do seu médico! Ele deve se perguntar: - quem está aqui para me vigiar? Como se isto fizesse muita diferença, ou alguém se importasse. Farmacocinética... Ética... Cinema e ética. Farmácia? Que coisa mais esquisita... Parece complexo, mas essa palavra recorda-lhe o movimento do cinema... Nouvelle Vague. La Jeunesse, Bardot... A tela da TV projeta o filme “Parente é Serpente”, do cineasta italiano Mario Monicelli. O velho se pergunta, num lampejo de lucidez:- Por que o cineasta de tantas comédias desistiu de viver?... Será que não achava mais graça na vida? Quando foi que parou de rir dela? É, perdeu a graça de questa vita maledetta! Vita maledetta!... Não, melhor não querer saber, por que motivo ele se jogou da janela de um hospital na Itália, aos 95 anos. Melhor não pensar nisto! Teve suas razões, o poverello... Quem sabe foi culpa de algum parente serpente, ironiza, pensando em si mesmo... Prudente é deixar o coração tocar por si, no ritmo que melhor encontrar e seja lá o que Deus quiser. Escrita sombria ou brilhante em papel fosco, ou um pensamento que evoca Inglaterra e afasta a França de Bardot e Belmondo, a Itália de Monicelli, não se sabe a razão, enquanto olha perdido, palavras mínimas na bula, que indicam sintomas indecifráveis... Apoplexia... À mente lhe vem cinema, Apolo, apologia, geografia! Dislexia, dislexia! Dislexia!... É isto! Inglaterra! - Nunca estive lá... Corticosteroide, mas que diabos será isto? Corticoides, asteroides cortam o universo. É um bom verso. Devia olhar mais para o céu... Um corpo celeste? Um satélite? Pode cair em qualquer lugar. Quando morrer, quero ir para o céu... Melhor tomar o remédio de uma vez, porque há uma confusão mental a ponto de explodir as têmporas. Esta falta de ar não combinaria com Londres...
...Advertências peremptórias: não tome remédios sem o conhecimento do seu médico! Ele deve se perguntar: - quem está aqui para me vigiar? Como se isto fizesse muita diferença, ou alguém se importasse. Farmacocinética... Ética... Cinema e ética. Farmácia? Que coisa mais esquisita... Parece complexo, mas essa palavra recorda-lhe o movimento do cinema... Nouvelle Vague. La Jeunesse, Bardot... A tela da TV projeta o filme “Parente é Serpente”, do cineasta italiano Mario Monicelli. O velho se pergunta, num lampejo de lucidez:- Por que o cineasta de tantas comédias desistiu de viver?... Será que não achava mais graça na vida? Quando foi que parou de rir dela? É, perdeu a graça de questa vita maledetta! Vita maledetta!... Não, melhor não querer saber, por que motivo ele se jogou da janela de um hospital na Itália, aos 95 anos. Melhor não pensar nisto! Teve suas razões, o poverello... Quem sabe foi culpa de algum parente serpente, ironiza, pensando em si mesmo... Prudente é deixar o coração tocar por si, no ritmo que melhor encontrar e seja lá o que Deus quiser. Escrita sombria ou brilhante em papel fosco, ou um pensamento que evoca Inglaterra e afasta a França de Bardot e Belmondo, a Itália de Monicelli, não se sabe a razão, enquanto olha perdido, palavras mínimas na bula, que indicam sintomas indecifráveis... Apoplexia... À mente lhe vem cinema, Apolo, apologia, geografia! Dislexia, dislexia! Dislexia!... É isto! Inglaterra! - Nunca estive lá... Corticosteroide, mas que diabos será isto? Corticoides, asteroides cortam o universo. É um bom verso. Devia olhar mais para o céu... Um corpo celeste? Um satélite? Pode cair em qualquer lugar. Quando morrer, quero ir para o céu... Melhor tomar o remédio de uma vez, porque há uma confusão mental a ponto de explodir as têmporas. Esta falta de ar não combinaria com Londres...
Uma investigação envolvente de um lugar desconhecido, da mesma forma que não
conhece o campo minado da mente e da alma, que nunca sabe onde pisa, ( pois é, posso visitar a Torre de
Pizza) desce com o comprimido pela garganta. Um gole d'água, dois, três, quatro. Uma bula de remédio nas mãos... Anúncio de
muitas impossibilidades de viagens futuras, porque, se tivesse dinheiro, iria
sim para a Inglaterra, ou Itália... Ou seria França?... Mas agora, cardíaco, com falta de ar, abandonado pelos
parentes, tudo ficava mais difícil. Azar, azia! Viajar de avião? Não teria mais tempo. Por que
não pensei nisto antes, quando era jovem? O que tinha feito com todos os dias, a saúde e o dinheiro? Dinheiro tinha até como arranjar, se o sonho de conhecer Londres e a rainha da Inglaterra
o seduzisse continuamente e não tardiamente. Mas, saúde?... Não tinha como
resolver. Ou tinha? Matar-se aos 95 anos, quem diria? Pobre Monicelli de sua
Itália. Mas eu queria Inglaterra... França não! Uma Inglaterra é tão envolvente e humana,
quanto a convincente sensualidade de Copacabana cheia de corpos suados e
seminus. É uma investigação coordenada pelo preço da ambição e o desejo de tudo
conhecer. Preço da passagem pode até ser parcelado em suaves prestações, mas
sonho não! Sonho é para ser inteiro. Hoje já não poderia mais pensar em arrumar a bagagem e pegar um avião. Cardíaco! Foi o que sentenciou o médico implacavelmente,
sem ao menos olhar para meus olhos. Cardíaco! Aquele safado! Velhaco! Só queria o meu dinheiro. Aliás, há muito não me olhavam de frente e
muito menos nos olhos.
Humanos, como qualquer um de nós, sábios, loucos, líricos, desiludidos vagam
pela noite, ou permanecem imóveis diante da televisão. Todos com
sentença de dias contados. Os estudantes, os mendigos, os empregados, os
desempregados, os músicos e as professoras... Parece que a semana pode ser tranquila,
porque a segunda-feira acorda quase silenciosa, rente ao sol. O velho toma um
remédio para a pressão à noite e outro pela manhã e segue a vida, dormindo
diante da televisão, como se nada tivesse mudado fora dele. Por dentro a cabeça cogita mil possibilidades e outros pontos de vista. Mais uma noite,
mais um dia, mais um filme. Não entendi o final do filme! Por dentro, mais uma desilusão, uma impossibilidade e muita falta de ar.
Quem diria, cheguei! Cheguei aos 95 anos... Ninguém se lembrou.
Autora||: Valéria Áureo.
In Sortilégio dos Signos
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